Wednesday 6 October 2010

O Vermelho e o Verde

"Agora, quando o resultado das eleições de 3 de outubro está emergindo em seu conjunto, já é possível fazer balanços mais abrangentes, menos enevoados por manipulações da mídia ou expectativas frustradas. Distinguem-se, no panorama que se abre, duas tendências consolidadas: as “ondas” vermelha e verde.


A ONDA VERMELHA


A “onda vermelha” veio antes, cronologicamente. Atingiu seu ápice em meados de setembro, recuando em parte nas três semanas anteriores às urnas. Significou um vasto desafio a alguns dos fatores que marcam a submissão social no Brasil, no passado e no presente. Entusiasmadas pelo tímido – porém inédito – movimento de redistribuição de riqueza ensaiado no governo Lula, as maiorias questionaram o poder dos coronéis (locais e regionais); a ditadura da mídia piramidal (inclusive a TV Globo); a influência dos “formadores de opinião” da classe média conservadora; a força dos velhos preconceitos econômicos, segundo os quais investimento público é sinônimo de “gastança”.


Os efeitos deste grande movimento são generalizados. Na disputa presidencial, a diferença entre PT e PSDB – os partidos que expressam, no imaginário popular, democratização e elitismo – alargou-se de 7 pontos percentuais, no primeiro turno de 2006, para 14,3 agora. No plano estadual, o PT obteve vitórias emblemáticas no Rio Grande do Sul e, quase certamente, Distrito Federal. Tanto no Senado quanto na Câmara os partidos que compõem a base de Dilma ultrapassaram os 60% necessários para mudanças constitucionais.


No Senado, aliás, o DEM, melhor expressão da velha direita, viu sua bancada eleita em 2002 reduzir-se de 14 integrantes para apenas dois, agora; enquanto a do PSDB encolheu de 8 para 5. PSOL e PCdoB, que não haviam elegido senadores em 2002, têm agora, respectivamente, dois e um representantes. A casa ficou livre, além disso, de alguns ícones sagrados do conservadorismo, como Tasso Jereissati (PSDB-CE), Arthur Virgílio (PSDB-AM), Marco Maciel (DEM-PE) e Heráclito Fortes (DEM-PI). Na Câmara dos Deputados também houve guinada à esquerda, embora menos pronunciada.


A ONDA VERDE


Já a “onda verde” formou-se na reta final da campanha. Em menos de vinte dias, Marina Silva (PT) passou de cerca de 12% das intenções de voto para 19,3%, no cômputo final. É o triplo do percentual (6,85%) alcançado por Heloísa Helena no primeiro turno de 2006, quando a então candidata do PSOL também representou uma espécie de terceira força. Mas a evolução qualitativa é ainda mais importante que a numérica. Heloísa expressava essencialmente uma frustração e um protesto – contra Lula e o PT. Setores da esquerda e (principalmente) da classe média, que idealizavam um governo mais radical (ou mais puro) que o real, descarregaram sua decepção na figura da senadora, amarga e embrabecida.


Reconhece os grandes avanços sociais dos últimos oito anos e o papel democratizador desempenhado pela esquerda histórica. Mas pensa isso não basta. Embora a enxurrada de votos que recebeu nos últimos dias tenha origens diversas e até contraditórias (como se verá adiante), o sentido político e simbólico que deu a sua candidatura é inconteste. Ela sugere que não basta integrar as maiorias nos padrões de produção e consumo do capitalismo, livrando-as da “exclusão”. É possível discutir os sentidos do desenvolvimento.


Afinal, que projetamos, como futuro coletivo? O “direito” dos pobres a seguir a classe média e mofar horas enjaulados em seus automóveis, todos os dias? O aumento indefinido da produção de energia, para que o consumo de latinhas de alumínio continue se expandindo? Casas para todos, mesmo que em regiões remotas das metrópoles, onde a natureza foi agredida e a mobilidade é quase nula? O título de maiores exportadores mundiais de alimentos, às custas de nossas florestas e preservando os latifúndios?


Marina não recebeu, é claro, apenas os votos de quem faz estes questionamentos. Ela foi beneficiada pelos eleitores que a mídia, após uma campanha abjeta e prolongada de calúnias, conseguiu tirar de Dilma – mas não foi capaz de transferir a Serra. Em seu colo caíram, também, as adesões por preconceito: gente amedrontada, nos grotões, por ouvir dizer que a candidata de Lula promove o aborto, é ateia, flerta com seitas satânicas. O PT deveria compreender que são circunstâncias da política institucional. Também ele foi beneficiado, mais de uma vez, por balas perdidas, nas disputas entre seus adversários. Para ficar num único exemplo, basta citar Maria Luíza Fontenelle, primeira prefeita eleita pelo partido numa capital (Fortaleza, 1985). Ela consagrou-se nas urnas também porque o PDS, partido da ditadura que recém-terminara, viu-se incapaz de derrotar Paes de Andrade (do PMDB, inimigo histórico) e preferiu descarregar seus votos na petista.


INCLUSÃO OU REINVENÇÃO?


A emergência tão abrupta da figura política de Marina é mais um sinal de que o Brasil está mudando. Mas ao mesmo tempo em que confirma a potência das políticas de Lula, este fenômeno convida a atualizá-las, para que não se tornem repetitivas e obsoletas. A inclusão social, a criação da “nova classe média”, a “emergência das classes C e D” são reais e benvindas. Mas tende a repetir-se rapidamente, no Brasil, o choque que se deu entre o “welfare state” europeu e seus filhos rebelados de 1968.


Superada a “exclusão”, conquistado um lugar ao sol no pátio do capitalismo, uma nova questão se apresenta. Como continuar reinventando a vida? Certas análises muito recentes, sobre o primeiro turno brasileiro de 2010, tendem a diagnosticar a tendência de parte dos “incluídos” ao conservadorismo.


Vencida a condição de miserável, uma parcela se tornaria refratária às propostas que sugerem novas mudanças: ou por temer regressar à condição anterior ou por querer diferenciar-se da massa dos pobres, que votam à esquerda. Esta seria a razão para Dilma ter obtido, no Nordeste e Norte – as regiões mais beneficiadas pelos programas sociais – dianteira inferior à que se previa.


Para testar esta hipótese, será preciso examinar os resultados das eleições em regiões sociais homogêneas, comparando-os com os de pleitos anteriores. Um exame mais profundo do fenômeno talvez revele um bifurcação em Y. Ultrapassadas as condições de desigualdade mais dramáticas, parte da sociedade pode tender, de fato, ao conservadorismo. Mas um outro setor – especialmente entre a juventude, de todos os extratos sociais – passa a reivindicar mudanças ainda mais profundas.


Ele alegra-se com a superação da miséria, mas isso apenas aguça seu desejo de uma vida nova. A simples exaltação das conquistas alcançadas não o anima. E repele (talvez sem realismo, mas certamente com razão…) os “efeitos colaterais” do que foi obtido. Neste grupo, estão os eleitores que se chocam, por exemplo, com a ausência de uma política ambiental avançada; com a devastação contínua (ainda que decrescente) da Amazônia; com a lentidão da reforma agrária e a conivência com o agronegócio predatório; com a construção de grandes obras sem esclarecimento suficiente de seus impactos ambientais; com o envenenamento e congestão das metrópoles; com as alianças com certos coronéis da política.


Marina seduziu, provavelmente, uma parte importante (talvez majoritária…) deste eleitorado. Ele não se confunde com a ultra-esquerda clássica. Por isso, não optou pelo PSOL (embora tenha, certamente, admirado sua participação irreverente e pedagógica de Plínio Sampaio nos debates). Nem presta atenção ao fato de a candidata do PV ter como vice um empresário cotado na lista Forbes dos bilionários globais; de voar a bordo do jatinho mais luxuoso da campanha; de ter, como assessor econômico, alguém mais neoliberal que o próprio Serra; de ter se filiado a um partido cujo passado é marcado pelo fisiologismo. Muito além da causa ambientalista, este eleitorado vê, no Verde de Marina, o símbolo de uma ideia-base: não basta matar a fome, nem incluir a todos na ordem atual; temos um mundo e um país a inventar.


A existência de uma vasta parcela da sociedade que pensa assim é “algo nunca antes visto na história do Brasil”. Não vem ao caso, neste instante, debater os qualidades e limites da candidata, ou as inconsistências e contradições das forças em que seus planos se apoiaram. O importante, no momento, é perceber que Marina ajudou a expressar um fenômeno que Lula, Dilma e a esquerda que os apoia deveriam festejar, em vez de lamentar. Este setor, que se ampliará cada vez mais à medida em que ficar para trás a fase da mera “inclusão”, será contraponto aos “novos conservadores” e a seu peso imobilizante."


Reprodução de trechos de artigo do jornalista Antonio Martins, ex-editor do Le Monde Diplomatique Brasil, publicado originalmente no site Outra Palavras. Os negritos e os subtitulos saó meus.

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