Monday, 25 July 2011

As funções da literatura

Crítico literário, professor, sociólogo, militante. Um adjetivo sozinho não consegue definir a importância de Antonio Candido para o Brasil, considerado um dos principais intelectuais do país, e do qual, novamente, destaco abaixo um trecho de um dos seus mais conhecidos e importantes trabalhos.


E uma ótima entrevista com o “mestre” realizada este mês pode ser lida no website do jornal Brasil de Fato, AQUI.



Quando se trata de estudar manifestações literárias, a concepção de Lévy-Bruhl seduz pelo que tem de favorável à exaltação das faculdades poéticas, dos elementos irredutíveis da fantasia, que nela parece estender-se sobre a vida do espírito como um estofo transfigurador. Mas mesmo sem pressupor diferenças essenciais entre a nossa literatura e a dos povos primitivos, é evidente que os problemas suscitados por ambas são diversos. E talvez a meditação sobre tais diversidades ajude a compreender certos aspectos da criação literária, tanto dos primitivos quanto, em certa medida, dos grupos rústicos iletrados nas sociedades civilizadas.


(...) Para entender a função da literatura oral é preciso não perder de vista a sua integridade estética. E é preciso começar distinguindo, nela como na literatura escrita, - função total, função social e função ideológica.


A função total deriva da elaboração de um sistema simbólico, que transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos expressivos adequados. Ela exprime representações individuais e sociais que transcendem a situação imediata, inscrevendo-nos no patrimônio do grupo. Quando, por exemplo,encaramos a Odisséia, o aspecto central que fere a sensibilidade e a inteligência é esta representação de humanidade que ela contém, este contingente de experiência e beleza, que por meio dela se fixou no patrimônio da civilização, desprendendo-se da função social que terá exercido no mundo helênico. A grandeza de uma literatura, ou de uma obra, depende da sua relativa intemporalidade e universalidade, e estas dependem por sua vez da função total que é capaz de exercer, desligando-se dos fatores que a prendem a um momento determinado a um determinado lugar. Esta função é aparentemente menos acentuada na literatura oral, que parece limitar-se ao âmbito restrito dos grupos em que atua e que a produziram. Todavia, quando surgem possibilidades de comunicação entre os grupos, a sua universalidade pode afirmar-se, e até mais do que sucede com as obras da literatura erudita, - pois se de um lado ela radica em experiências peculiares ao grupo, de outro encarna certos temas da mais acentuada intemporalidade, como os de alguns mitos, análogos em vários povos. Daí o encanto e a emoção que as lendas e canções primitivas despertam em nós, mesmo precariamente traduzidas e arrancadas ao seu contexto.


A função social (ou “razão de ser sociológica”, para falar como Malinowki) comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade. Assim, os episódios da Odisséia, cantados nas festas gregas, reforçavam a consciência dos valores sociais, sublinhavam a unidade fundamental do mundo helênico e a sua oposição ao universo de outras culturas, marcavam as prerrogativas, a etiqueta, os deveres das classes, estabeleciam entre os ouvintes uma comunhão de sentimentos que fortalecia a sua solidariedade, preservavam e transmitiam crenças e fatos que compunham a tradição da cultura. Na literatura dos grupos iletrados, talvez esta função prepondere, pesando mais do que na literatura erudita dos nossos dias, feita para a leitura individual e voltada antes para a singularidade diferenciadora dos indivíduos, do que para o patrimônio comum dos grupos.


Considerada em si, a função social independe da vontade ou da consciência dos autores e consumidores de literatura. Decorre da própria natureza da obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela comunicação. Mas quase sempre, tanto os artistas quanto o público estabelecem certos desígnios conscientes, que passam a formar uma das camadas de significado da obra. O artista quer atingir determinado fim; o auditor ou leitor deseja que ele lhe mostre determinado aspecto.


Todo este lado voluntário da criação e da recepção da obra concorre para uma função específica, menos importante que as outras duas e freqüentemente englobada nelas, e que se poderia chamar de função ideológica, - tomada o termo no sentido amplo de um desígnio consciente, que pode ser formulado como idéia, mas que muitas vezes é uma ilusão do autor, desmentida pela estrutura objetiva do que escreveu. Ela se refere em geral a um sistema de idéias. O autor dirá, por exemplo, que tencionou mostrar como a vida é enganadora e como a virtude é uma questão de aparência, - coisas que poderíamos imaginar Machado de Assis falando das Memórias póstumas de Brás Cubas. Do seu lado, o público dirá se a obra lhe mostrou ou não esta concepção. Neste caso, a obra pode ser dita interessada, no sentido próprio, e não sectário, embora geralmente a função ideológica se torne mais clara nos casos de objetivo político, religioso ou filosófico. Esta função é importante para o destino da obra e para a sua apreciação crítica, mas de modo algum é o âmago do seu significado, como costuma parecer à observação desprevenida.


Só a consideração simultânea das três funções permite compreender de maneira equilibrada a obra literária, seja a dos povos civilizados, seja, sobretudo, a dos grupos iletrados. Se naquela os aspectos propriamente estéticos sobressaem de maneira a realçar a função total, nesta a função social avança para o primeiro plano, tornando-a ininteligível se não for levada na devida conta.


Estímulos da Criação Literária 54-57, Literatura e Sociedade, Antonio Candido

1 comment:

Alice Nascimento said...

Belo resgate! Abraço