Wednesday 27 June 2012

Cinco anos de blog "livre porque vivo fugindo"

Hoje é dia 27 de junho. De 2012. Há cinco anos, num dia mais cinzento e chuvoso que hoje em Recife, pese ser primavera por lá, iniciava este blog em Londres. Faz um ano e quase meio que estou no Brasil agora, depois de quase seis anos fora entre Catalunya, UK e Centroamérica, e esse Brasil de hoje  não é o meu de origem, senão um que fica uns vários mil quilômetros de distância da cidade natal. Quero escrever neste "aniversário" sobre voltar, não-voltar, rejeições, impressões, violações, hipertensões, de forma avaliativa e reflexiva, e enquanto isso,  pra não deixar passar em branco, apenas lembro:

"Sou livre, porque vivo fugindo".



Wednesday 6 June 2012

O "cheiro", carícia nordestina


Ainda é vulgar entre o povo do Nordeste brasileiro dizer-se cheiro em vez de beijo. O “cheiro” é uma aspiração delicada junto à epiderme da pessoa amada, crianças em maioria. As narinas sorvem o odor que parece ao enamorado perfume indizível. As mães humildes pedem sempre aos filhinhos o “cheiro” tradicional. Dê cá um cheirinho pra mamãe!… Um cheiro, filhinho, para mamãe.

Naturalmente, gente grande não desaprende a técnica e apenas muda a orientação. Eu ainda dou um cheiro no cangote daquela malvada…

Pereira da Costa, Vocabulário pernambucano, explica no verbete “Cheiro”: – “Cheirar carinhosamente alguém: Dar um cheiro. “Recebe somente um cheiro/ No cogote extraordinário,/ Pelo teu aniversário.” (Jornal do Recife, nº 205, 1912). “Deram um punhado de abraços e cheirosem Arlequim, e se foram na maciota.” (idem, nº50, 1914).

Moraes não registrou. No Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa, 2ª edição, 1939, está: “Cheiro (Bras. Nordeste) – Aspiração voluptuosa.” Qual será a origem desse cheiro popular no nordeste brasileiro?

O beijo é asiático. Veio com os cultos orgiásticos de Vênus. Da Fenícia para Pafos e Citera. Chipre e Citera foram os santuários irradiadores para a Grécia. A Fenícia espalhara a sua Astarte lunar para as ilhas, Ásia Menor, Mar Negro. O beijo popularizou-se devagar. Como cortesia ou homenagem, divulgou-se com a conquista macedônica. Os macedônios de Alexandre Magno estavam devotos do cerimonial persa.
Da Grécia o beijo viajou para Roma, onde foi um soberano. Maior documentação poética despertou o beijo entre os romanos do que entre os gregos. Não existe poema na Grécia, como este Ad Lesbian, de Caio Valério Catulo, nascido em Verona no ano de 87 antes de Cristo e falecido depois em 47:


Da mi basia mille, deinde centum;
Dein mille altera, dein secunda centum;
Dein usque altera mille, deinde centum;
Dein cum milia multa fecerimus;
Conturbabimus illa, ne sciamus,
Aut ne quis malus invidere possit,
Cum tantum sciat esse basiorum.

“Dá-me mil beijos, em seguida cem, depois mil outros, depois outros cem, ainda mil, ainda cem; então, depois de milhares de beijos dados e recebidos, confundimos tão em o número que, ignorada dos invejosos e de nós mesmo a conta exata dos beijos, não possa excitar a sua inveja”.
Não teve o philhema grego o prestígio do osculum romano.
De sua velhice como saudação, há o gesto de Judas beijando Jesus Cristo no horto de Getsemani.
Não sei se os negros africanos conheciam o beijo. Creio que não antes dos árabes ou os negros setentrionais, pela expansão de Cartago e das águias de Roma.
O indígena brasileiro não beijava. Langsdorff ensinava que o tambetá, o adorno labial, impossibilitava o ósculo. Dezenas e dezenas de povos não sabiam o que era o beijo, no Taite, Nova Zelândia; papuas, tasmanianos, os aranda do centro da Austrália, os semangda península malaia, os hotentotes namáquas da África sul-ocidental. O maori da Nova Zelândia esfrega o nariz no nariz da namorada. A moça aino do norte do Japão dá dentadinhas amorosas nos dedos, braço, orelha e lábios do seu noivo ou candidato.

No nheengatu não há correspondência verbal para o beijo. Stradelli escreveu Piteresaua, que é verdadeiramente chupamento, ato, ação de sorver, chupar, de pitera, chupar (Batista Caetano de Almeida Nogueira). Nos vocabulários recentes há Pitera nas duas acepções, chupar e beijar (Tastevin). Podia existir o cheiro entre os tupis mas não encontro rasto em livro e conversa. A sinonímia da “boa-língua” não permite a suposição. O tupi conhecia como sinônimos de cheirar ou especificações do cheiro, odor, ocetum, sakena, genéricos, a catinga, cheiro de seres animados, o pixê, dando a sensação enjoativa, repugnante, o inema, o mau olor, o fedor, de podre. Como afago, nada diz.

Se não tivemos o cheiro cariciante dos indígenas nem dos negros africanos (ignorando se usavam o beijo antes dos árabes), resta o português como portador do mimo.
Há, entretanto, dois povos que empregam o cheiro, a aspiração, como uma meiguice. Há o esquimó, cheirando a moça e vice-versa, como carícia. Assim registrou Mrs. R. E. Peary no My Artic journal (New York, 1893). E há o chinês.
Não traria o português o uso desse dengue dos inuit das margens da América ártica ou da Groenlândia. Lógico é que o fizesse dos chineses, povo muito seu conhecido e freqüentado, desde o século XVI.
Há um depoimento vivo do velho Venceslau de Morais, o solitário de Tokushima, apaixonado pelo Japão, devoto do Oriente, onde ficou e morreu. Venceslau de Morais foi o Lafcadio Hearn de Portugal.
Venceslau de Morais registra em Traços do Oriente (19-21, Lisboa, 1895) a origem do “cheiro”: – “os chineses não dão beijos… Não dão beijos, ou dão-nos de uma maneira muito diferente da nossa, sem o uso dos lábios, mas aproximando a fronte, o nariz, do objeto amado, e aspirando detidamente… O china beija o filhinho tenro, beija a face pálida da esposa, como ele é nós beijamos as flores, aspirando-lhes o perfume; a assimilação é graciosa… Tendo agora por conhecida, e é coisa que não se contesta, a extrema agudeza olfativa dos chineses (os negociantes cheiram as moedas de ouro que julgam falsas, e assim conhecem o grau maior ou menor da liga de cobre), podemos talvez conceber uma vaga idéia do prazer da mãe, respirando sobre a carne fresca do filho um ambiente que ela não confunde como outro; o prazer do mandarim apaixonado, conquistando à brisa o perfume de uns cabelos negros, que ele aprendeu a adorar.”

Não sei de outra fonte e de outro povo para a presença do cheiro dengoso do nordeste. Não creio forçar a lógica etnográfica imaginar que o português, tradicional sabedor e vivedor na terra sagrada da China mandarina, tenha reunido aos múltiplos e sabidos processos de acariciar mais esta forma delicada e voluptuosa do beijo sem lábios.
Resta-me saber é se o português, que trouxe esta carícia chinesa para o nordeste do Brasil, deixou o cheiro nalgum recanto de Portugal.


Cascudo, Luís da Câmara. Superstição no Brasil. São Paulo, Editorada Universidade de São Paulo, 1985, p. 208