Friday, 3 September 2010

Das coincidências antropo-cine-literárias


O que Kaspar Houser, Macunaíma, e o Popol Vuh podem ter em comum?


Então eu estava ali, onde ainda estou, pesquisando e escrevendo sobre o Popol Vuh em função de um convite inesperado para uma breve fala na October Gallery aqui em Londres sobre literatura centro-americana no dia 16 deste mês.


Durante o período que vivi em El Salvador tive a oportunidade de me familiarizar com este que é o texto mais importante em línguas nativas de todo o continente americano. O livro da criação Maya-Quiché é um produto literário mítico-histórico sobre o período pós-clássico do reino Quiché no que hoje é a Guatemala e perpassa toda a tradição cosmológica e, por conseqüência, antropológica, pré-colombina dessa civilização. Um verdadeiro documento histórico que merece tal título e uma extraordinária obra da imaginação humana.


Pois lendo e relendo resenhas sobre o Popol Vuh, acabo por encontrar que esse também é o nome de uma banda alemã dos anos 70, liderada pelo tecladista Florian Fricke. Foi uma dos primeiros grupos a utilizar sons de ambientação espacial, sintetizadores e percussão étnica – um dos precursores da música psicodélica e do que contemporaneamente chamamos de World Music.


E resulta que a Popol Vuh é a banda que fez a trilha sonora de vários filmes de Werner Herzog, um dos meus cineastas preferidos, incluindo Nosferatu e, o genialíssimo, sempre presente na minha lista Top 5, O Enigma de Kaspar Hauser.


O filme, de 1974, está baseado na historia verídica de Kaspar Houser e usa o texto real das cartas encontradas com ele. Hauser foi uma criança abandonada, envolta em mistério, encontrada supostamente com 17 anos de idade numa praça em Nuremberg, Alemanha do século XIX, 1828, com alegadas ligações com a família real de Baden. (No filme, o ator Bruno, no entanto, tinha 41 anos na época das rodagens). Possuía com ele apenas uma carta endereçada a um capitão da cidade, explicando parte de sua história, um pequeno livro de orações, entre outros itens que indicavam que ele provavelmente pertencia a uma família da nobreza.


Hauser passou os primeiros anos de sua vida aprisionado numa cela, não tendo contato verbal com nenhuma outra pessoa, dispondo apenas de um cavalo de brinquedo para ocupar seu tempo. Isso o impediu de adquirir uma língua, mas a exclusão social de que foi vítima não o privou apenas da fala, senão de uma série de conceitos e raciocínios, o que fazia, por exemplo, que Hauser não conseguisse diferenciar sonhos de realidade durante o período em que passou aprisionado.


Ele se torna objeto de curiosidade e chega a ser exibido num circo antes de ser resgatado por um nobre que pacientemente o transforma. Ele aprende a ler e escrever, regras de comportamento social e desenvolve abordagens pouco ortodoxas à religião e à lógica. A música é o que mais lhe fascina.


A ligação inesperada entre Popol Vuh, Kaspar Houser e Herzog é ainda mais genial quando percebemos o titulo original do filme em alemão: Jeder für sich und Gott gegen alle, que significa “Cada um por si e Deus contra todos”, que não é nada mais nada menos que uma frase tomada por Herzog da icônica obra da nossa literatura brasileira, Macunaima, de Mário de Andrade.


E, para concluir, faço um adendo a este post para não deixar de mencionar o não menos brilhante ensaio do lingüista Izidoro Blikstein, “Kaspar Hauser ou A fabricação da realidade”, (disponivel online aqui) que tive o privilegio de estudar durante a Faculdade de Letras na UFPel.


Convidado pela perplexidade de Kaspar Hauser diante do mundo, Blikstein revisita um clássico tema, muito caro às Ciências Humanas: a relação entre linguagem, percepção, conhecimento e realidade.


Subversão do nosso aparelho perceptivo-cognitivo: esta deve ser a isotopia básica a iluminar a significação mais profunda da história de Kaspar Hauser, vista por Herzog. De fato, pior do que os enigmas atirados ao espectador, é o estranho mundo em que se vê, de repente, plantado, atônito, o próprio Kaspar Hauser. Seu olhar fixo diante das pessoas, ruas, casas, objetos. Tudo assusta. As dimensões, os movimentos, a lógica, a perspectiva, o pensamento, a fala.

Conhecer o mundo pela linguagem, por signos lingüísticos, parece não bastar para dissolver o permanente mistério e a perplexidade de Kaspar Hauser. Talvez porque a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação lingüística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade.


Coincidências que merecem aleatório, mas provocativo, registro. Eis duas cenas da apaixonante lógica de Kaspar Hauser (legendas em espanhol e em inglês apenas):





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