- Uma lei para regrar o uso de uma língua não serve para nada mais do que chamar a atenção para o autor da proposta através dos holofotes midiáticos que uma polêmica geralmente acende.
O deputado da Assembléia Legislativa do meu Rio Grande do Sul, Raul Carrion (PCdoB), inspirado pela proposta inócua que seu colega de partido na Câmara Federal, Aldo Rebelo, fez há mais de dez anos, resolveu entrar no barco dos nacionalistas linguísticos. Parece ser um meio de transporte que funciona bem, que chega rápido ao destino de criar falsas polêmicas e oportunidades de capitalizar em cima de falsos fatos políticos. Aliás, e infelizmente, os comunistas do PCdoB gostam muito dessa tática, haja vista que Rebelo também é pivô da polêmica do novo Código Florestal Brasileiro, e assim la nave va...
E os deputados gaúchos, linguisticamente mal assessorados, aprovaram por 26 votos a 24, na semana passada, o projeto de Carrion que estabelece a obrigatoriedade da tradução de expressões ou palavras estrangeiras para a língua portuguesa sempre que houver no idioma uma palavra ou expressão equivalente.
O companheiro-governador Tarso Genro tem 30 dias para sancionar ou vetar a lei e para tal decisão a Assessoria do Piratini disse que Tarso irá ouvir especialistas. Pois de fato se assim o faça nosso governador, que se manifestou contra a ridicularização do projeto de Carrion alegando que a França e o estado canadense de Quebec já tomaram medidas semelhantes, entenderá, porém, que as línguas não mudam nem para o bem nem para o mal, mas sim para atender as necessidades dos usuários da língua. Tentar reger um fenômeno lingüístico por lei é tão falacioso quanto querer legislar sobre a taxa de mutação do gene p53.
LINGUAS NÃO SÃO HOMOGENEAS – O BRASIL É MULTILINGUE
O primeiro problema detectado no PL concerne ao conceito de língua apresentado tanto por Carrion como por Rabelo. Eles acreditam que a língua portuguesa em uso no Brasil é um sistema homogêneo, passível de ser compreendida por qualquer cidadão em qualquer “rincão” do vasto território brasileiro.
Marcos Bagno, um linguista para ser ídolo, explica que o Brasil ocupa o quinto lugar entre os países de maior diversidade linguística do mundo!
São mais de duzentas línguas faladas em território nacional, entre línguas indígenas (a maioria), línguas de imigração (europeia e asiática), línguas afrobrasileiras e línguas crioulas (de base francesa, no Amapá).
Mas quem sabe disso? Quem fala sobre isso? Impregnados da máxima autoritária “um país, um povo, uma língua”, que remonta à formação dos estados nacionais no século XVIII, inclusive lingüisticamente ainda estamos muito atrasados com relação a outras democracias do mundo e até a nossos vizinhos - o Uruguai recentemente reconheceu português-uruguaio como patrimônio linguístico nacional (alguém aí sabia que existe um português uruguaio, falado por lá desde antes da independência deles e nossa?).
Numa tentativa de derrubar essa muralha ideológica, alguns linguistas (entre os pouquíssimos que consideram que sua profissão deve ter um mínimo impacto social e político) propuseram ao IBGE que incluísse no Censo 2010 uma pergunta sobre a língua que o entrevistado fala habitualmente em casa. O IBGE topou, a equipe formada levou um bom tempo formulando a pergunta de modo que ela não deixasse brechas para ambiguidades e contradições.
Mas no final o IBGE decidiu não incluir a pergunta linguística no Censo 2010. Razão alegada: o questionário já estava longo demais, era preciso cortar algumas perguntas…
Há um receio histórico de reconhecer que o Brasil é multilíngue, que a revelação dessa realidade teria implicações políticas e culturais profundas, como o reconhecimento dos direitos linguísticos dos falantes de línguas minoritárias, a necessidade de prover recursos para a educação bilíngue ou plurilíngue das áreas onde muitas línguas são usadas e outros investimentos.
ESTRANGEIRISMO NÃO DESCARACTERIZA
O renomado linguista José Luiz Fiorin, também refletindo sobre a questão, escreveu artigo no qual ele reafirma que a língua não é homogênea como pregam os comunistas-nacionalistas.
Mesmo assim, Fiorin mostra porque os supostos prejuízos que o uso de estrangeirismos podem causar a língua são falaciosos. “qualquer pessoa é capaz de aprender qualquer setor do vocabulário, se ele tiver algum sentido para ela”, ou seja, basta que o estrangeirismo faça (ou venha a fazer) parte do universo de referência do usuário da língua, como por exemplo, os termos de origem inglesa que compõem o vocabulário do mundo do futebol córner, pênalti, off-side etc..
Um idioma se caracteriza por uma gramática e por um fundo léxico comum. Se em nenhum dos dois casos o estrangeirismo afetar a base estrutural da língua não haverá descaracterização do idioma. Como, de acordo com Fiorin, em nenhum dos dois casos os estrangeirismos podem ameaçar os elementos que caracterizam o idioma português em uso no Brasil: porque é a gramática que sistematiza as pronúncias dos empréstimos estrangeiros, por meio de elementos fonológicos usados em conformidade com a morfologia e a sintaxe da língua portuguesa: Por exemplo: “O Office-boy flertava com a baby-sitter no hall do shopping Center.” O arcabouço da lingua está intacto nesta frase.
Através da história, sempre que uma língua influencia outra os discursos nacionalistas surgem tentando prever uma situação apocalíptica geradas por tais empréstimos. Nestes discursos não é verificado que as línguas mudam. Desta forma os estrangeirismos não representam o fim de uma língua, tampouco a desnacionalização ou o empobrecimento da língua que recebe o empréstimo. O processo é justamente o contrário, tal invasão de estrangeirismo, no caso da língua portuguesa, não empobrece, mas enriquece ao incorporar termos que não são previstos em seu léxico.
PURISMO É CONSERVADORISMO
Além disso o inglês não é o único idioma a “abusar” do povo brasileiro, como sugere o ilustre deputado. Também o latim e o francês tiveram influência decisiva, mas, principalmente o próprio português causou danos irreversíveis à cultura brasileira, extinguindo, por exemplo, mais de mil das línguas indígenas que foram faladas no Brasil, por meio de uma lei – imposta por Pombal.
O “esforço” de proteger a língua portuguesa mantendo-a pura de influências externas remete para outro problema. Este tipo de lei que vê no elemento estrangeiro uma ameaça à identidade nacional, traz subentendida a idéia de que se pretenda defender, também, uma só língua, a língua de poder, sob controle da classe dominante. Neste sentido, supõe-se que, por coerência, queiram mantê-la pura também dos ataques e influências internas, das variedades não-prestigiosas da língua, faladas pelos que não têm poder, que não escrevem e não consomem.
Como afirma Fiorin, ideologicamente, o deputado Aldo Rebelo e agora Raul Carrion, aproximam-se muito, em seu discurso, de setores da direita, conservadoristas, como é o caso do gramático Napoleão Mendes Almeida, que acreditava que aqui no Brasil se falava uma variante imprecisa e incorreta da língua portuguesa,acrescida de mestiçagem de falares indígenas e africanos, que corromperam a língua vernácula.
- Segundo outro grande lingüista, Sírio Possenti, esse tipo de legislação cria possibilidades de preconceito lingüístico ao proibir o uso de termos estrangeiros como os provocados por Getúlio Vargas sobre as comunidades imigrantes do Sul do Brasil, durante a Grande Guerra. E essa imposição conservadora que extingue línguas e elitiza uma variação determinando como erradas e incultas as outras variações do idioma, é o conservadorismo do qual está pautado o PL de Carrion aprovado na Assembléia gaúcha.