A poesia é uma metralhadora na mão dum palhaço. Seu poder de fogo pode ser apenas intencional, e seu efeito apenas hilário, mas o franco-atirador, ao expor-se em sua ridícula revolta, no mínimo consegue provocar alguma reação, ainda que meramente divertindo o público, e alguma reflexão sobre o papel patético dos idealistas e visionários, que, no fundo, somos todos nós.
Glauco Mattoso disse tudo. Tudo o que explica a razão dos meus constrangimentos com o exercício da produção literária.
Para mim, nunca ter materializado artisticamente, até recentemente, toda a razoável coleção pessoal de idéias, notas e descrições arquivadas para esse fim representava (ou ainda representa) uma tentativa consciente de se esquivar da fila indiana dos medíocres que acham que fazer literatura e, particularmente escrever poesia, é um mero laboratório de empirismos e amadorismos.
Fato: a maioria dos mortais não entende a poesia como uma arte que não pode prescindir da técnica; aferram-se a pequenez intelectual de que na poesia a inspiração predomina sobre a transpiração e faz desdém do engenho indispensável para concretizar o gênio.
Reconheço ao mesmo tempo que sob a eterna excusa da falta de tempo e das circunstancias em prioridade talvez se disfarçasse o receio de enfrentar tal desafio, mas também havia a consciência, real, da necessidade de estar pendente daquilo que explicita Glauco Mattoso.
Glauco Mattoso responde a pergunta feita pelo blog Sambaquis: O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?
Depende justamente da concepção poética que ele adotou. No meu caso, trata-se de vomitar algo visceral, de me expor, me devassar e desabafar uma biografia excêntrica para me identificar com outros excêntricos e tirar, dessa diversidade de individualidades, o traço de humanidade que nos une, isto é, o sofrimento e a revolta contra as opressões e repressões. (...).
À questão do iniciante, eu recomendaria três coisas: primeiro, muita leitura, poesia de várias épocas e estilos, para estabelecer preferências e simpatias; segundo, fidelidade à própria biografia, nada de fingir demais, ainda que o poeta seja um fingidor, como dizia Pessoa; terceiro, estudar versificação, mesmo que o cara não pretenda fazer poesia rimada nem metrificada. Assim, ele estará minimamente instrumentado para o "ofício".
Leitura, fidelidade à própria biografia e estudo de versificação. Nunca tinha visto um conselho literário tão prático, objetivo, honesto e pertinente. De acordo. Sem botar nem tirar.
Mas para que esse conselho tenha a credibilidade da fonte, àqueles que não conhecem Glauco Mattoso, atenção:
De Alexei Bueno, no livro "Uma história da poesia brasileira": Glauco Mattoso (1951), pseudônimo de Pedro josé Ferreira da Silva, já pela escolha deste mostra a sua verve humorística: homenageando dois baianos geniais e barrocos, Gregório de Matos e Glauber Rocha, o pseudônimo deste paulistano cria a palavra glaucomatoso, o que ele era de fato, até, infelizmente, perder a visão. Trata-se de personagem completamente "sui generis" no panorama da poesia brasileira, dedicando-se, depois de fases muito diversas, a uma numerosíssima obra de sonetista, composta com todos os requintes técnicos imagináveis, muitas vezes tendo comotemas a podolatria e a coprofilia, num balanço entre o erudito e o pornográfico que traz um sabor único e irresistível à sua poesia.
De Ademir Assunção, na revista curitibana "Medusa": Sua temática corrosiva é um banquete difícil de ser engolido até mesmo pela maioria dos críticos brasileiros. O sadomasoquismo explícito, a podolatria escancarada (...), a coprofagia, o sarcasmo feroz e a ironia ferina, presentes em toda a sua obra, ainda estão longe de ser assimilados pela "alta e nobre" cultura — mesmo que Glauco Mattoso escreva sonetos tecnicamente perfeitos, poemas concretos de intensa inventividade, versos livres com ricas cadências rítmicas —, sempre com uma consciência cínica, claro
Herdeiro do barroco Gregório de Mattos na sátira política e na crítica de costumes, esse poeta cego, ficcionista e articulista em diversas mídia, incluindo a revista Caros Amigos, com seu tratado de versificação "O sexo do verso: machismo e feminismo na regra da poesia", botou o ovo em pé:
A questão me parece flagrantemente elementar: as ultimas gerações litterarias se accommodaram na desculpa de que, tendo as modernas tendencias "abolido" as formas fixas, todos os poetas estariam automaticamente desobrigados de dominar e até de conhecer regras de versificação.
E segue: (texto publicado no site de literatura Portal Cronópios. E, sim, a grafia utilizada por Glauco é exatamente como segue).
Mesmo sendo unanimemente reconhecida a falta de obra analoga durante tantas decadas, não apparecia quem supprisse a lacuna, o que leva a inevitaveis reflexões sobre a necessidade de algo que os maiores interessados (os proprios poetas) não tinham coragem de admittir. Quaes seriam os motivos dessa pretensa indifferença dos auctores em relação à theoria e à technica, si a communidade academica e boa parte do publico leitor continuam attentas a um minimo criterio de avaliação da competencia no processo de creação poetica?
A questão me parece flagrantemente elementar: as ultimas gerações litterarias se accommodaram na desculpa de que, tendo as modernas tendencias "abolido" as formas fixas, todos os poetas estariam automaticamente desobrigados de dominar e até de conhecer regras de versificação. Isso me lembra um bando de alumnos relapsos que, certos da approvação pela "progressão continuada", consultam seus botões: "Estudar p`ra que, si ja passei de anno? Apprender a compor versos? P`ra que, si ja me considero poeta e ninguem me desmente?"
E, antes que me accusem de caretice, vou mais longe e digo o que penso dos vanguardismos tendentes a "abolir" regras. Sempre admirei auctores iconoclastas que ousaram transgredir valores vigentes, como Mario e Oswald no modernismo ou Augusto e Haroldo no concretismo, para não fallar na constante inquietação creativa de Bandeira e Drummond. Mas, quando reaffirmo que lhes applaudo a coragem e a irreverencia, é justamente por saber a que poncto conhecem, elles todos, cada norma que se propuzeram a contestar. Quando quizeram, tanto Mario como Augusto compuzeram impeccaveis sonetos, e só não os fizeram em quantidade porque estavam interessados em outras alternativas estheticas. Tracta-se de procedimento muito differente da attitude que observo nos poetas das gerações mais recentes (exceptuados uns tantos chordelistas, lettristas, trovadores e sonetistas): são, na maioria, arrogantes na defensiva de justificarem sua ignorancia technica com a supposta "obsolescencia" de quaesquer "regulamentos" no campo da arte. Ja ouvi muitos destes allegarem: "Metrica? Ora, cada um tem a sua! Rima? Ora, isso é coisa superada! Rhythmo? Ora, meu ouvido decide qual será!" Conversa molle! O Homem Legenda do Adão Iturrusgarai, si estivesse por perto, poderia traduzir taes desculpas assim: "Ora, si não sei escandir, digo que metrica é coisa individual... Ora, si não sei rimar, digo que não me prendo a processos ultrapassados... Ora, si não sei accentuar, digo que rhythmo é relativo a como o poeta declama..." Me enganna, que eu gosto!
A minha percepção, por outro lado, é a de que cada experiencia poetica mais transgressiva só tem razão de ser quando contrasta com um contexto mais retrogrado e burocraticamente mediocrizado. Como si o poeta de vanguarda nos advertisse: "Sim, estou quebrando regras, mas vejam bem! Não estou rompendo com a monotonia da regra para inaugurar a monotonia da quebra! Não estou convidando todos os novos poetas a insistirem nesta tecla! O que talvez eu esteja fazendo é dar uma chacoalhada nessa mesmice e alertar para que as regras, que agora desrespeito, sejam practicadas com mais cuidado e maior rigor, ja que a rotina vem tornando a poesia muito mechanica e repetitiva!"
Eis como interpreto a acintosa intenção bandeiriana ou drummondiana naquelles poemas explicitamente livres, que os subbandeirianos e subdrummondianos passaram a macaquear "ad nauseam", o mesmo valendo para as aventuras mais radicaes da poesia dicta visual, contra a qual nada tenho só por ter ficado cego, ja que tambem a practiquei emquanto enxergava.
Em summa, sejamos honestos, intellectualmente honestos, si não no mercado editorial ou na midia cultural, ao menos nos bastidores das feiras litterarias e nos corredores academicos, e admittamos que, tal como os fundamentos para um jogador de futebol, os rudimentos estichologicos representam o preparo basico para quem se pretenda poeta. "
#853 MULTITILANTE [28/8/2003]
Lambidas pelo corpo vão mais longe
que a mera zona erógena: seu campo,
quimera do lingüista, é ver o trampo
chegar onde não chega o pé do monge.
De tudo quanto em gozo a glande abrange
até a sola do pé, que, esteta, encampo
no acervo do fetiche, inda destampo
panela a quem picante rango manje.
A lágrima é salgada, a cera amarga,
o sangue é doce e azedo o que se sua.
Mais líquida é a saliva que a descarga
do sêmen; queijo o esmegma; a fêmea nua
a peixe sabe, em parte, e até na ilharga
degusto algo que a língua retribua.
#806 DO OPORTUNISMO [20/8/2003]
Ao ver vaiada a ópera que assina,
um diretor polêmico reage
baixando a calça e expondo o que o Bocage
cantou em frente e verso, à fescenina.
A mídia puritana o recrimina.
Embora a esquerda a seu favor se engaje,
aquele que não acha mero ultraje
no gesto a criancice lhe imagina.
Quem mérito não tem, atenção chama
mostrando em cena aquilo que nós todos
tapamos e que brilha só na cama.
Mas arte, enfim, não passa dos engodos
que um vivo marqueteiro pela lama
arrasta e lucra um "ismo" de tais lodos...
1 comment:
fala figura,
to morando em Lisboa.
passei três meses na Africa e voltei p terrinha.
fui ao brasil porque minha vó falaceu,
enfim.... vivendo querido!!!
e vc por onde anda??
Post a Comment