*Por Aleksander Aguilar
Este texto foi publicado originalmente na versao impressao do jornal Brasil de Fato em junho do ano passado. Republicado aqui hoje por ocasiao do aniversario de 30 anos da tragédia.
O episodio ocorrido em El Mozote, em El Salvador, em 11 de dezembro de 1981, é um dos maiores massacres cometidos contra civis na história recente da América Latina, com pelo menos o dobro de vitimas que My Lay e quiçá levado a cabo com mais requintes de crueldade do que o da vergonha mundialmente famosa promovida na aldeia vietnamita pelos Estados Unidos durante a guerra, nos anos 60.
O famigerado ex-batalhão Atlacatl do exército salvadorenho, numa tentativa desesperada de conter o brote revolucionário no país no inicio dos anos 80, aterrorizou e assassinou quase 1200 civis pacíficos, incluindo idosos, mulheres e crianças de colo. A missão do Atlacatl, financiado e treinado pelos Estados Unidos, era colocar em prática as medidas necessárias para operações conhecidas como tierra arrasada ou, no jargão do próprio exército na época “secar o rio para evitar que os peixes cresçam”.
Contudo, para muitos salvadorenhos, especialmente os da geração pós-guerra (1980-1992), El Mozote é distante, no tempo e também no espaço, apesar do cenário da matança estar a menos de 300 km da capital, San Salvador.
Essa é a ironia da recente e obscura história salvadorenha. El pulgarcito de America (o pequeno polegar da América), como é carinhosamente chamado pela população, também quer, há quase 20 anos, virar páginas de dor. Mas punir os criminosos, rechaçar a impunidade e manter viva a memória nem sempre foi – e muitas vezes não é – entendida como a prova séria dessa disposição. O país continua ignorando-se e sendo ignorado. Setores da sociedade, aqueles envolvidos com massacres, esquadrões da morte e desaparecimentos, querem incentivar o esquecimento em lugar da toma de consciência critica e isso faz com que, como nação, o lugar se mantenha olvidado.
Em nível latino-americano essa invisibilidade e desmemoria é igualmente latente. Brasileiros, particularmente, também tendem a conhecer mais da simbólica história de My Lay do que sobre os fenômenos e dores, com semelhança de caráter e motivações, que nosso continente sofreu. Não temos a menor idéia do que foi o El Mozote. A América Central toda, e quase sempre, não é vista no senso-comum mais do que como um pedaço de terra entre o sul e o império onde houve guerras, há vulcões e terremotos e nem nos envergonhamos dessa grotesca e absurdamente rasa idéia que temos da nossa própria geografia e história.
PARA CHEGAR AO EL MOZOTE
Sem veiculo próprio - como acontece em muitos destinos de El Salvador - o acesso não é muito simples, embora as estradas hoje em dia sejam bastante razoáveis. A falta de um sistema de transporte público decente no país (tema central de recentes acordos de cooperação entre Brasil e El Salvador) faz com que a viagem seja uma jornada.
Saímos no início da tarde do deprimente Terminal do Oriente de San Salvador com destino à cidade de San Miguel, de onde se toma outro ônibus. Ao chegar aí, pouco depois das cinco horas, já não há transporte até a famosa Perquin, (cidadela que foi o centro do controle guerrilheiro na região nos anos 80), com exceção das populares traseiras de camionetes em uma viagem de duas horas até outro lugarejo histórico, Francisco Gotera, para dai pegar outra pick-up. Para evitar estar na estrada ao anoitecer, decidimos passar a noite em San Miguel para seguir às seis da manhã seguinte.
No outro dia, depois de mais três horas de outro precário ônibus, chegamos ao lugar onde esta o Museu da Revolução Salvadorenha, um pequeno e humilde prédio, organizado pelos próprios ex-combatentes que ainda vivem na região, que abriga um verdadeiro arquivo histórico: armas usadas na guerra, cartazes do Frente Farabundo Martí Liberación Nacional (FMLN) e de organizações internacionais em solidariedade à ex – guerrilha, fotos de homens e mulheres que lutaram na revolução, cascos de bombas de 500 libras do arsenal norte-americano que eram despejadas pelo exército de El Salvador (financiado pelos Estados Unidos na sua política de contra-insurgência e intervencionista) e até os carros utilizados por dois dos cinco comandantes do FMLN durante a guerra, Schafik Handal e Joaquin VillaLobos.
Visitamos o museu pela manhã com a idéia de ir ao El Mozote pela tarde, mas depois das 13h já não há nem pick-ups que passem pelo desvio de Arambala, de onde temos que tomar outro ônibus para, por fim, chegar ao cenário do massacre. Assim, foi apenas na manhã seguinte que conseguimos chegar. Uma minúscula vila, entrada nas montanhas da parte Norte-oriental do país, quase na fronteira com Honduras. Hoje, o vilarejo não deve ser muito diferente do El Mozote do inicio dos anos 80, a não ser pela presença de um monumento a memória do massacre e pelo simpático e singular “posto de informação turística” em frente à igreja.
Alguns minutos depois de descermos do ônibus – com mochilas e caras de turista – no meio da silenciosa e polvorenta vila, uma jovem se aproxima disposta a nos contar a historia. Ao redor, só se vê uma dúzia de residências; a igreja; o passo eventual de uma criança ou adolescente de bicicleta; dois ou três homens, depois da cerca, com lenha ou apetrechos de trabalho agrícola nas costas; alguns cachorros famintos perambulando; um poço pintado de branco de onde se ergue um alto bambu com uma bandeira vermelha do FMLN no topo, e uma pequena mercearia de onde nos observa uma curiosa senhora.
Estamos em frente a diminuta praça onde está o monumento à memória do massacre e que guarda os restos mortais de um milhar de pessoas assassinadas. É ali, em frente aquela placa de metal recortada na forma da silhueta de uma família, colocada em frente a um muro de tijolos com os nomes das vitimas, que ouvimos a humilde guia turística do El Mozote relatar a triste historia da miserável vila e recorrer os lugares exatos das execuções, dos escombros das casas que resistiram aos incêndios provocados pelos soldados para esconder a vergonha da barbárie ali cometida.
VERGONHA ESCONDIDA
Durante 11 anos uma mulher, Rufina Amaya Marquez, foi diante de todo o mundo a única testemunha do massacre, mas pouca gente lhe dava crédito. Ela foi a única pessoa que, milagrosa e bravamente, sobreviveu a asquerosa operação “Yunque y Martillo” do famigerado Batalhão Atlacatl do exército salvadorenho no dia 11 de dezembro de 1981, quando foi executada toda a população de El Mozote e arredores.
Até outubro de 1992, ano em que a guerra civil de pelo menos 12 anos em El Salvador por fim havia terminado, Washington teve sucesso em manter o crime em segredo; enterrado entre mais de mil cadáveres no extremo oriente do país.
Rufina, que viu seu marido e quatro filhos (um deles de oito meses de idade que lhe foi arrancado do peito) serem assassinados, conseguiu, com uma extraordinária forca psicológica, contar a história ao mundo. Seu relato, verificado in locu por jornalistas norte-americanos, foi manchete do The Washington Post e do The New York Times após a legendária Radio Venceremos (órgão oficial de comunicação da guerrilha) ter denunciado o massacre. Porém a Casa Branca, que naquele momento, começo de 1982, debatia se manteria ou não mais apoio para o governo ditatorial salvadorenho combater a guerrilha, precisava desacreditar a história que, no período intrincado da Guerra Fria, deixava o país entre o dilema de manter a “segurança nacional” e o suposto respeito aos direitos humanos (já que os políticos americanos estavam cientes do nível de violência em El Salvador) que os Estados Unidos julgavam, e julgam, exercer.
“SECAR O RIO”
No dia primeiro de dezembro de 1981 a guerrilha foi informada de que havia sido confirmado um operativo militar de grande envergadura na região. O governo salvadorenho queria “resgatar” Morazan das mãos dos guerrilheiros que tinham o controle político no Oriente do país. Os oficiais temiam que se a guerrilha não fosse retirada de Morazan, o país, o menor de todo o continente Americano, com apenas 21 mil km quadrados, pudesse terminar dividido em dois.
O batalhão Atlacatl, treinado pelo carismático e truculento coronel Domingos Monterrosa (homem de confiança dos norte-americanos) era uma classe diferente da maioria dos soldados salvadorenhos. Eram mais ferozes, mais profissionais e muito melhor equipados. Sempre com dinheiro e estrutura norte-americana. Nesse período os EUA haviam dado um passo em frente no financiamento da guerra (que totalizou 500 milhões de dólares, oficialmente, entregues ao governo salvadorenho para combater a guerrilha), mas não estavam dispostos a envolver seus soldados diretamente, já que o país ainda estava sob a ressaca histórica do Vietnam.
O El Mozote estava dentro da zona controlada pela guerrilha, mas os rebeldes não eram capazes de oferecer aos civis suficiente proteção. Em uma operação do exercito de grande porte a população civil também tinha que fugir. Mas a população do El Mozote, no inicio daquele dezembro, decidiu ficar.
A MALDIÇÃO
Como em muitas outras comunidades do Departamento de Morazan, a população se esforçava em manter-se neutra durante a guerra e muitas vezes, de fato, tinha medo da guerrilha. Contudo, a confiança no exército, e em Marcos Diaz, contribuiu para levar todo o vilarejo à morte.
Segundo o livro “Vagalumes no El Mozote” (tradução livre do espanhol) publicado em El Salvador pelo Museu da Palavra e da Imagem (MUPI) com relatos da história feitos por Santiago, responsável pela legendária Radio Venceremos (Carlos Henrique Consalvi, atual diretor do MUPI), pelo jornalista norte-americano Mark Danner e pela própria Rufina Amaya, o dono da única mercearia da comunidade organizou uma plenária em frente a sua casa no início de dezembro de 81. Ele contou aos moradores o que lhe haviam dito em San Miguel, onde ele fazia as comprar para abastecer sua lojinha.
Um oficial do exército lhe garantiu que, apesar da operação militar estar realmente dirigindo-se ao El Mozote, o melhor a fazer era ficar na vila e permanecer nas casas para não correr o risco de que os soldados os confundissem com guerrilheiros em retirada. Marcos Diaz confiou na sua fonte no exército e a população do El Mozote confiou em Marcos Diaz.
A maioria ficou na vila, sabendo que o exército se aproximava, mas confiantes de que, por não serem colaboradores da guerrilha, nada de mal lhes ocorreria. A certeza converteu-se em decepção e morte e para Marcos Diaz, em uma maldição. O batalhão Atlacatl estava ali para levar a cabo uma estratégia política. civil organizada. A inédita e histórica vitória eleitoral no ano passado do FMLN, o ex-grupo guerrilheiro transformado em partido institucional depois dos Acordos de Paz de 92, tem gerado expectativas positivas em diversas organizações de direitos humanos e atores políticos do país, inclusive na comunidade internacional, para a plena realização dos direitos das vitimas por justiça e reparação nesse episódio do El Mozote e em diversos outros casos de violação dos direitos humanos durante a guerra civil no age:PT-BR">Oficialmente, a missão era aniquilar a Radio Venceremos. A rádio da guerrilha era a obsessão do coronel Monterrosa que não admitia e se enfurecia com a sua existência. O Atlacatl foi ao norte de Morazan, com destino a Guacamaya, onde de fato foi um dos lugares de funcionamento da emissora. Porem a inteligência da guerrilha já havia tomado conhecimento do operativo e o coletivo da rádio partiu do acampamento muito antes da chegada do exército. Durante seu trajeto a Guacamaya, o Atlacatl aterrorizou e assassinou em Perquin, em Torilas e no El Mozote finalizou sua missão de barbárie.
“Vagalumes no El Mozote” relata que o batalhão levou dois dias para cumprir o se pode chamar de ritual. A população foi dividida entre homens, mulheres e crianças; cada grupo encerrado em uma casa da comunidade. Os homens, que estavam na igreja, foram os primeiros. Foram levados em pequenos grupos atrás do prédio e metralhados e os que ficavam agonizando eram decapitados. As cabeças, cujos crânios foram encontrados anos mais tarde, foram amontoadas perto da sacristia. Pouco depois foi a vez das mulheres. Os soldados selecionavam as mais jovens e as arrastavam para os cerros nos arredores. As outras ouviam os gritos das que estavam sendo estupradas. Depois, os soldados voltaram às casas e começaram a separar as mães dos filhos. Grupos de mulheres eram levados a execução na pequena praça da vila e a casa aos poucos se enchia de órfãos aos prantos. Os soldados do Atlacatl por fim terminaram sua missão, matando todas as crianças do El Mozote.
Rufina Amaya assistia todo o repugnante ritual escondida atrás de um pé de maçã, que ainda existe no El Mozote reconstruído. Quando enfileiravam as mulheres na praça, ela, que estava ao final de um dos grupos, aproveitou a distração do soldado em meio ao alarido de desespero e se arrastou por baixo de uma cerca escondendo-se atrás da arvore onde permaneceu por todo um dia e toda uma noite. Ela faleceu em 2007, mas deixou registrado no livro publicado pelo MUPI o seguinte depoimento:
“Yo no sabía qué hacer. Estaban matando a mis hijos. Sabía que se regresaba allá me harían pedazos, pero no podía resistir escuchar los gritos de mis hijos. No podía soportarlo. Tenía miedo de llorar ruidosamente. Pensé que iba a gritar, que me iba a volver loca. No podía soportarlo y suplicaba a Dios que me ayudara. Le prometí que si él me ayudaba, yo le contaría al mundo lo que había ocurrido aquí. Después me amarre el cabello y la falda entre las piernas y me arrastre sobre el estomago detrás del árbol. Allí había animales. Unas vacas y un perro me vieron e yo tuve miedo de que hicieran algún ruido, pero Dios hizo que estuvieran silenciosos. Me arrastre entre ellos. Cruce la calle bajo un cero de púas y cruce entre las plantas de maguey hacia el otro lado. Me arrastre lejos a través de las espinas. Cavé un pequeño hoyo con mis manos y coloque mi cara dentro de él para poder llorar sin que nadie me oyera. Todavía podía oír los niños gritando y llorando. Me quedé allí con la cara en la tierra y lloré”.
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Durante as negociações para a paz em El Salvador, já no começo dos anos 90, foi estabelecido que seria criada, com intermediação da ONU, uma comissão internacional, chamada Comissão da Verdade, para investigar e fazer público os acontecimentos que marcaram a historia país e apontar recomendações. O documento define a guerra civil salvadorenha como “loucura” e “delirante”.
Assim como no Brasil pós-ditadura, a luta por memória, verdade e justiça em El Salvador têm sido conduzida pela sociedade civil organizada. A inédita e histórica vitória eleitoral no ano passado do FMLN, o ex-grupo guerrilheiro transformado em partido institucional depois dos Acordos de Paz de 92, tem gerado expectativas positivas em diversas organizações de direitos humanos e atores políticos do país, inclusive na comunidade internacional, para a plena realização dos direitos das vitimas por justiça e reparação nesse episódio do El Mozote e em diversos outros casos de violação dos direitos humanos durante a guerra civil no país que deixou um saldo de pelo menos 70 mil mortes.
Entretanto, permanece como o grande desafio da democracia salvadorenha e da plena reconciliação nacional – analogicamente ao desafio brasileiro pós-regimes militares – a revisão da Lei de Anistia. Ela é uma norma ainda vigente que estabelece a extinção penal de todos os que estiveram envolvidos na violação dos direitos humanos durante o conflito salvadorenho. Na prática, a possibilidade das vitimas exigirem justiça com base na informação do relatório da Comissão da Verdade está vedada por esse obstáculo.
Ainda hoje, nenhuma investigação ampla foi levada a cabo no país pelo Estado, ninguém foi condenado em El Salvador e permanece a impunidade.
*Aleksander Aguilar é jornalista graduado, mestre em Estudos Internacionais pela Universitat de Barcelona e doutorando em Ciência Política pela UFPE.