Friday 30 April 2010

A Dani também erra

A minha amiga Dani é uma pessoa bem informada, bem educada, e inclusive, de bom gosto. Carinhosa e sensível, ela é certamente um orgulho na lista de amizades de qualquer pessoa. Ela é ainda, no entanto, um exemplo da capacidade humana de resvalar no periculosamente escorregadio piso da falta de perspectiva que, muitas vezes mosaicamente construídos por poderosos interesses, pode significar doloridas quedas de opinião mesmo para espíritos esclarecidos.

O debate sobre a Lei da Anistia Brasileira (1979) e sobre a Arguicao de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 153 (veja relatorio completo aqui) não é uma discussão sobre indenizações, Dani. Esse é um aspecto forçosamente ampliado do tema, por esses mesmos setores que comparam torturadores a guerrilheiros, para desqualificar a exaustiva luta de milhares de cidadãos do nosso país por justiça, por real democracia e por proteção dos Direitos Humanos. E antes que se pergunte sobre os “tais” Direitos Humanos – patrimônio da humanidade que ainda enfrenta preconceitos no Brasil – já que não é o tema per se deste post sugiro que se leia o simples, mas formidável artigo “E cadê os Direitos Humanos, publicado na Carta Maior, de autoria de Roberto Efrem Filho.

Ainda assim, se fosse para se ater a este aspecto, a resposta, com fins amigáveis, creia-me, ao teu texto ("Sou contra") poderia começar apontando-se a existência de um vicio de origem, para usar uma expressão jurídica. Desaparecimentos políticos da época da ditadura militar não podem ser indenizados porque as pessoas em questão estão tcham-tcham-tcham, desaparecidas. Ou mortas, mais provável, como bem lembras. Então a questão é: quem as fez desaparecer? Ou como morreram? Quem as matou?

Agentes do estado é a resposta. Isto é, o Estado brasileiro. O Brasil é um dos vergonhosos países do mundo em que a próprio aparelho militar e de inteligência da nação foi usado contra seus próprios cidadãos de maneira violenta e sistemática. Estes cidadãos muitos dos quais pegaram em armas, sim, o fizeram porque não podiam ser cidadãos plenos dentro do seu próprio país, o fizeram porque todas as suas liberdades civis, humanas ao final, foram rasgadas tais como seus membros, solas dos pés e das mãos quando caiam nas celas da própria policia do país que os deveria proteger e zelar. Havia funcionários públicos, pagos com impostos de trabalhadores, para empalar gente, para promover terror psicológico, afogar-los em latrinas, sangrar-los até a morte.

Escolha política? Não, não houve escolha dos que combateram a ditadura, houve necessidade, houve reação contra uma desenfreada caça às bruxas promovida pelos paranóicos e ridículos generalecos brasileiros dos anos 60 e 70. Esse contexto nos foge ao entendimento quando vemos ou lemos sobre esse debate apenas através das noticias da grande mídia nacional, que se aferra a discussão medíocre dos ressarcimentos financeiros e cria expressões de causar ojeriza como “bolsa-ditadura”. Uma absoluta falta de respeito com o cidadão desse país que teve que sair do território nacional para não morrer, que teve que abandonar sua vida, SUA VIDA, sua família, trabalho, porque se reuniu com um grupo de cinco numa faculdade. Ou nem isso, ou nada, apenas tinha um Bertold Brecht na estante de casa, apenas usava uma camiseta vermelha num dia qualquer e teve sua casa revirada, seu pai levado à força, seu irmão espancado, seus amigos humilhados. Essa gente, que não ganha tanto como o Chico Buarque, merece sim ressarcimento, merece ser reconhecida como cidadãos brasileiros para quem o Estado falhou, o Estado perseguiu, violentou.

Comparar o uso dos recursos do Estado para promover a repressão doentia e “tarada”, como classificou o ministro Carlos Ayres Britto durante o seu voto a favor da revisão da Lei da Anistia (projeto lamentavelmente derrotado no dia 29 de abril no STF) com os meios usados pelos próprios filhos da nação para denunciar a falta de liberdade e o terrorismo de Estado é no mínimo leviano. Aliás, os que se aventuraram na luta armada urbana e na guerrilha rural (Araguaia) são tão ignorados pela nossa história oficial que nem estudamos isso no colégio. Reproduzir a ladainha que compara militantes de esquerda com torturadores profissionais pagos pela nação é – nada pessoal, Dani, mas tem que ser dito – uma insensatez.

Sim, houve seqüestros e assaltos por parte dos grupos de esquerda. Mas onde estão os militantes de esquerda que torturaram? Se existem, processo, vergonha publica e cadeia neles! Tortura é crime de lesa-humanidade, não é crime político ou conexo.

Não, Dani, quem lutou pela liberdade nesse país não é um criminoso vil e nem mesmo pegando em armas pode ser comparados, minimamente, aos que torturaram e assassinaram recebendo pagamento dos impostos dos nossos pais e avós. Aquele Estado foi uma vergonha e nós não somos iguais a ele. Mas essa vergonha continuará latente enquanto permaneça vigente a constrangedora lei da anistia para os torturadores.

Esquecer é impossível. E indevido. Deixo o texto de Federico Mayor Zaragoza, ex-diretor da Unesco, recém publicado no seu blog, como reflexão:


Olvidar es imposible. E indebido. El recuerdo, sobre todo después de tantos años, no conlleva sentimientos de venganza ni animadversión. Las víctimas saben que, a estas alturas, el conocimiento de la verdad les permitirá condenar el hecho delictivo pero ya no al delincuente. Sin embargo, podrán participar en la construcción de democracias en las que las ideas y actitudes que llevan a estos desmanes no puedan repetirse, y quienes hoy mantienen posiciones de esta naturaleza deban rectificar su comportamiento.

Descubrir lo que sucedió exactamente y sin fronteras, para paliar el dolor de las familias y amigos de las víctimas, para que "sepan" lo acaecido y obtengan las compensaciones a que haya lugar.

Sólo con memoria, con el conocimiento en profundidad del pasado, sabremos construir un futuro apropiado a nuestro destino común. Memoria del porvenir. El pasado ya está escrito. Debe describirse fidedignamente. Pero el por-venir (me gusta repetirlo) está por-hacer. Y sólo podremos hacerlo con memoria sin fronteras, con justicia sin fronteras.

Una justicia que aplique leyes progresivamente perfeccionadas con imparcialidad, con la mayor objetividad posible... y que no vuelva a repetirse el espectáculo incomprensible y bochornoso de leyes interpretadas según la ideología y pertenencia partidista del juez.

Justicia sin fronteras para una memoria sin fronteras, imprescindible para la convivencia armoniosa que todos anhelamos.

Como científico, sé que el futuro es lo único que importa y no puede diseñarse desde la bruma, la ambigüedad, la mentira, la simulación... Sólo habrá democracia genuina --sépanlo bien quienes acusan a los que piden memoria y justicia de ponerla en riesgo- cuando todos podamos mirar hacia atrás y hacia adelante libremente, conjuntamente.

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