Tuesday 12 March 2019

Raiva, pressa e cuspe

Às vezes eu escrevo como cuspo. Não por desgosto, mas pelo abrupto. Não porque é rápido, mas por viscoso e dissoluto, que é como tantas vezes sinto que devo escrever, porque experimentei longas conversas com meus botões, percebi que “tô me cobrando muito e recebendo pouco”, como diz o poeta, sinto urgências, e por fim me permito à raiva ancestral que acompanha minha memória genética, minhas vivências, meu espirito.
Raiva é a palavra mesmo. Urgência também. Hoje faço público um aviso, um anúncio, que não é grave, mas pra mim é solene: quero deixar bem avisado a quem se detém por aqui que do que eu falo é do que eu vivo e vivi. Eu só falo do que eu faço. Eu não sou um espectador, e nada tá dito em vão. Esse texto é pra isso. E isso não é 'só isso', é muito, embora pra ti possa parecer pouco. Eu falo escrevendo, e o signo ‘eu’ acaba por fazer-se dêixis quando aponto o dedo pra mim mesmo; me expresso na dependência do contexto, “yo soy yo y mis circunstancias”, a primeira pessoa é um lugar, de fala, de luta, de reflexão.
Não programei tempos para publicar logo agora, num ‘desaniversário’, essa reflexão-aviso. Mas é provável que venha a calhar. Ou atrapalhar. Como faço a cada março, respondi uma-a-uma todas as mensagens de felicitação e bons desejos pelo novo ano. É sincero mesmo, porque tão ocupadxs que somos todxs, digitar os caracterizinhos ali toma nosso tempo de uma forma que quem recebe deve sentir-se privilegiado... (imagina telefonar!!), assim que pra quem se digna, não por protocolo, mas por atenção, a escrever mais de duas palavras (tem que ser mais de duas, pô!) pra deixar um registro de boas vibras, eu também escrevo de volta, ritualizando mesmo a dinâmica, porque “gentileza gera gentileza”, disse outro poeta.
Mas mais um ano, e você, foi o gatilho para cristalizar o pensamento de muitos anos de autossabotagem. Na verdade minha intenção, desde dezembro passado, era não publicar absolutamente nada em redes sociais até este texto vir à tona. Não deu certo porque, ainda que com poucas incursões, tive que me manifestar em alguns assuntos, mas uma ‘nova fase discursiva’ começa agora.
‘Quando tudo começa’ em fato foi em 2007, estando na Inglaterra já há dois anos como migrante laboral, quando iniciei um blog tardio impelido pela experiência, pela necessidade de expressão de percepções e opiniões em escrito, que é a linguagem com a qual me sinto intimo.
Mas o tal blog sempre foi feito apenas para ser o que é até hoje: um precário arquivo pessoal on-line. Nunca tive outra pretensão com aquele projeto que não fosse essa, e por isso ele segue e seguirá com essas características.
Este testemunho, então, não é nenhuma estratégia de marketing pessoal nem publicidade de qualquer novo projeto digital, mas sim uma forma de vir afirmar que eu falo de um determinado lugar social que carrega ancestralidade, subalternidade , força e revolta; e que já naquele período de inicio de blog eu admitia a hegemonia da pessoalidade na linguagem, mas paradoxalmente tenho desde então, e antes, constantemente tergiversado e evitado falar sem a capa supostamente protetora da linguagem analítica e racional, propriamente séria, do texto cientifico, exemplarmente impessoal...
Sob um alto titulo acadêmico, diante da vida que me tomou produzir textos de maneira ‘asséptica e descontaminada’, tal como a maioria das instituições formais exigem, minha lógica era a de que assim poderia obter legitimação entre pares do meio. Um intelectual doutor, especialmente em certos campos das Humanidades, precisa fazer-se respeitar por sobriedade e elegância na escrita, diziam, me inculcavam, como se tais atributos fossem o contrário da primeira pessoa.
É verdade que naquele ‘Como tudo começa’ – titulo do meu primeiro post (numa coxa reflexão sobre a própria decisão de iniciar um blog) – eu já revelava que não era da minha predileção escrever em primeira pessoa ou com termos coloquiais e linguagem dita espontânea. “Antipatizo com a gratuidade ou com o levianismo que por vezes, muitas, isso gera no contexto escrito. É melhor não confundir o direito à comunicação e expressão com a proliferação da verborragia insistente”, encontrei que dizia eu mesmo há mais de uma década.
Esse argumento tem força, mas era mais bem parte da roupa de racional-objetivo que me ensinaram que eu deveria vestir, e que vinha em novas cores e modelos mais refinados particularmente no programa de doutorado que realizei. Fui sufocando pouco a pouco, embora apresentando algumas resistências, as demonstrações e produções de criatividades e deslocamentos.
Não por coincidência, ingressei nas redes sociais apenas em 2012, mesmo ano em que também ingressava no doutorado.
É por isso que muitos e muitas de vocês que eventualmente me leem e veem aqui não sabem nada de mim, ou muito pouco, além da condição sisuda de acadêmico que me deixei gerar a partir do tipo de fala que majoritariamente passei a falar neste tipo de mídia.
Ano passado, contudo, fiz uma experiência e publiquei dois textos abertos, como post de facebook, a partir de, digamos, subjetividades e identidades. Um sobre meu pai e outro sobre minha mãe. Numericamente pouco, simbolicamente bastante. Aos poucos fui e vou me dando conta, ou assumindo, que é de identidades mesmo que falo, construo e problematizo no meu trabalho que é, ipsi litteris, minha vida (um pouquinho de latim ai porque eu tô problematizando meu lugar acadêmico, não negando...).
Foi no ano passado, entre tanta vida na estrada que já me marcou na pele e no espirito, as viagens que mais recentemente me abalizaram particularmente, e que ainda elaboro: o período entre outubro a dezembro me foi especialmente provocador e transformador, e é desde lá entre recuperações e compromissos que lentamente tenho chegado até aqui, a essa fala desarmada que faz a antessala do peso da digna raiva, da urgência de gritar que não falo de exotizacões, não trato de problemas alheios, não me meto em projetos aleatórios e difusos, não vivo a vida olhando de nenhum lugar reservado na janelinha; falo de mim buscando a mim mesmo, entre outras subjetividades; sou centro-americanista porque sou centro-americano, sou brasileiro gaúcho porque cresci nos pampas. Essa Los Angeles no ano passado, que começou e não termina, foi/é um abismo e uma porta. Vou falar com densidade sobre isso em “UN CENTROAMERICANO DEL SUR EN LA CENTROAMÉRICA DEL NORTE”, texto em produção que também vou postar aqui.
Pode parecer hesitação quando eu demoro pra te responder o que eu faço, onde eu moro, pra onde eu vou, mas se estou eu mesmo pensando pra te dar a resposta objetiva que tu qualificas como eficiente, imagina tu que não sabe porra nenhuma de mim!
Eu venho de pai guerrilheiro e de mãe guerreira, e a partir desse lugar o que falo é o que eu vivo. Você pode não saber, mas eu quando eu falo sobre periferia, comunidade e organização sociopolítica não é porque eu li num livro, é porque eu cresci numa Cohab 2, e a gente se reunia e se organizava lá, através da cultura da rua e das esquinas, do mesmo jeito que fizemos em outros bairros da minha cidade natal, do mesmo jeito que me reúno e me organizo até hoje em diferentes quebradas da minha atual cidade de residência e de outros territórios em que morei, incluindo meu segundo país El Salvador e outros onde pude viver. Quando eu falo de discriminação e preconceito é porque já tive muito segurança de loja me seguindo nos corredores, muita porta fechada na cara, muito porteiro me barrando, muito baculejo (atraque) na hora errada, muita mochila revistada. Quando eu falo de hip hop, poéticas contemporâneas, e força organizativa é porque eu comecei a ouvir rap nos anos 90, ia nos eventos locais naquele tempo, escutava-via-fazia; é porque consegui me graduar, também, em Letras, porque a gente lotava evento literário quando não tinha rede social pra divulgar. Quando eu falo de artes visuais é porque eu produzo, pesquiso, tenho instalação, perfomances e exposições no Brasil e fora; quando eu falo de música é porque leio partitura, tenho vários anos de Conservatório como aluno de extensão universitária, bandas em que cantei, alguns shows, composição de letras e voz até já gravadas. Quando eu falo de partidos políticos e de movimentos sociais não é só a teoria que li e aprendi a sistematizar por conta de ofício, são muitos anos de reunião, muita greve e protesto, choque com policia, retaliação de autoridades federais, perseguições administrativas, marchas curtas e longas, acampamentos. Quando eu falo de democratização da comunicação não é só porque eu também me graduei em Jornalismo, e sim porque a gente construiu uma rádio comunitária que já, já cumpre 20 anos; é porque eu fui impedido de emprego ‘bom’ em empresa jornalística grande por me negar a cortar o cabelo, é porque a gente fez fanzine, gritou em alto-falante em caminhãozinho pelos bairros, e hoje mobiliza muito também em redes sociais nestes tempos digitais. Quando eu falo em capoeira é porque eu vivo nela há muitos anos, onde quer que seja que eu viva, deixo seu braço de mãe me abraçar. Quando eu falo que me preparo para finalmente publicar livros de literatura stricto sensu é porque, além do acadêmico (capítulos, compilações e organizações), tenho muita história pra contar e pra inventar do que eu mesmo pude viver em cinco países em menos de 40 anos. Quando eu falo em inglês, Ah, mó véi, é porque esfreguei muito chão, distribui muito panfleto, entreguei muita pizza, carreguei muito copo, passei muito frio. Quando eu falo de carnaval é porque vivi "Pernambuco Imortal", desci e subi muita ladeira na cauda e na cabeça do Elefante, acompanhei o Homem da Meia Noite, tomei axé pra ficar legal. Eu falo em discurso e descolonialidade porque aprovei uma tese doutoral, e porque cosmopolítica, tecnopolítica e geopolítica são o eixo do que tô produzindo, falando, vivendo. Mesmo o meu centro é periférico, viva a América Central!
É poeira da terra, queimadura do sol, queimadura de gelo, vergonha, sangue, sujeira, lágrima de raiva, humilhação, indignação, tendinite, gastrite, morte, gargalhada.
Mas pra quem quiser detalhe e todo curriculum vitae eu passo a porra do meu Lattes, Linkedin, portfolio e ainda mando o Facebook fazer um videozinho comemorativo de história pessoal. Me respeita, caralho! Não se espante, não se comova, ironize se quiser, mas também seguinte, que vou repetir: me respeita, caralho!
O meu velho blog, que de tão velho tem o mesmo layout desde o seu inicio, tem inspiração no conceito de Deixis – do grego δειξις, ato de mostrar – que é o processo pelo qual palavras e expressões dependem absolutamente do contexto. Dêiticos são palavras que se referem ao pessoal, temporal ou espacial de uma expressão. Nos dêiticos incluem-se pronomes pessoais, pronomes demonstrativos e advérbios. Quando eu iniciei a escrever online não tinha ideia de que o simbolismo do conceito de dêiticos serviria pra chegar até aqui.
A deixis é um dos traços que distinguem a linguagem humana das linguagens artificiais. Mas de ti eu não quero assentimento nem distinção, senão quero deixar aqui, público, esse anúncio, esse aviso. Falar em primeira pessoa é mesmo uma dificuldade, mas eu também sei de onde venho, e quanto eu mais eu caminho mais eu sei pra onde eu vou. Tô com raiva, tô com pressa, tô cuspindo. E é só o começo.

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