Num dia como hoje, há exatos 30 anos, me acordei na cama da mãe e do pai e caminhei diretamente ao quarto que meu irmão e eu dividíamos, onde havia uma TV daquelas que se tinha que literalmente puxar um botão/pino para liga-las. A ideia era assistir os desenhos do Show da Xuxa, que naquele tempo incluía Thundercats e He-man. O trajeto cruzava a sala, onde minha vó falava ao telefone, daqueles de disco, claro, sentada no braço do sofá. O tal botão/pino da TV estava quebrado, e era difícil puxá-lo sem a ajuda de um adulto. A vó veio até o quarto. Pensei que precisamente para tal tarefa, mas a vi algo chorosa, meio-que secando uma lágrima, e me disse: “- Não, meu filho, hoje não é dia de ver televisão". Claro que lhe perguntei por que, mas ela simplesmente respondeu: “- Volta pro quarto e tenta voltar a dormir”. Obedeci, sem mais questionamento, mas com uma segura desconfiança.
Deitei novamente, com um pensamento latente: “- O pai morreu”, disse a mim mesmo sem produzir som.
O sentido comum, e o clichê, nos chamam a definir a morte como mistério, mas é evidente que uma criança de sete anos dificilmente pensaria nesses termos, embora eu sentia que se tratava de uma ausência, que também chega, e também pesa, e que minha vó certamente chorava porque lhe haviam contado que meu pai havia morrido. Fiquei na cama pensando: “Como será agora na escola?” “O que dirão meus amigos e colegas?” Todos sabiam que meu pai estava doente. Sabiam talvez até mais do que eu. Uma vez uma colega me disse que havia visto minha mãe na TV. Eu disse que não, que minha mãe não trabalhava na TV, mas ela insistiu e me assegurou que lhe tinha visto no telejornal da hora do almoço. Só muitos anos mais tarde é que cheguei a saber que a mãe havia estado em uma campanha de arrecadação de doações para o tratamento da leucemia da qual o pai padeceu por mais de dois anos – tratamento caríssimo, especialmente nos anos 80, quando o transplante de medula óssea era algo novo e arriscado, sobretudo em adultos. Em justiça, como a mãe mesmo costuma enfatizar, sem o apoio material da empresa para a qual ele trabalhava (que custeou boa parte das idas e vindas ao hospital de referência em Curitiba), teria morrido bem antes, pois não tínhamos nem temos meios financeiros.
Não lembro o que houve entre aquela reflexão na cama, intrigado pelo impedimento aos desenhos, e a chegada de uma amiga da família que tinha duas filhas, mais ou menos da idade do meu irmão e da minha, e que haviam sido nossas vizinhas no endereço anterior ao daquela casa na rua Alberto Pasqualini. Ela foi a encarregada de dar-nos a noticia, da qual já sensorialmente sabia. “- O pai de vocês foi morar com o Papai do Céu”, foi que ela mais ou menos nos disse.
De alguma forma eu sabia que depois da noticia ela e minha vó – e talvez também havia mais gente na casa – esperavam muito choro e dor por parte de nós, os pequenos. Mas eu não chorei imediatamente, eu processava a confirmação da informação que já havia percebido, ciente de que era algo muito grave, que me exigia estar triste. Então eu chorei lentamente, solucei. Me levaram até o pátio da casa, onde havia um tanque de lavar roupa, e me limparam o rosto com água. Havia sol naquela manha. É vivida essa lembrança.
Essa amiga então, mãe das nossas ex-vizinhas, pediu que nos arrumáramos para que fossemos passar o dia com elas. A ideia era entreternos, evitar nossa exposição às dores e arranjos logísticos para o traslado do corpo do meu pai de Curitiba até Pelotas, onde ele foi enterrado, tão distante de sua terra natal centro-americana. Ficamos a sós no quarto, meu irmão e eu, juntando alguma roupa e brinquedos. Meu irmão então, com cinco anos de idade, de repente para de mexer na mochila, me olha diretamente com uma expressão confusa e pergunta: “- O pai morreu, mano?” “- Morreu, Vladi, morreu”.
Agora ele chora copiosamente, como se tivesse entendido. Eu o abraço e digo algo que não lembro. O que temos de fazer é terminar de arrumar a mochila porque nos estão esperando.
Da tarde naquela casa, grande, das ex-vizinhas, lembro que todos as brincadeiras que queríamos fazer eram aceitas, todos os jogos, todas as vontades. Elas tinham uma daquelas máquinas de brinquedo de fazer pipoca de verdade, um dos êxitos da Estrela no período, e até esse experimento fizemos. Em algum momento, no sobe-e-desce escadas entre os quartos e a sala, me detive no meio do caminho e expressei em voz alta: “- Será que o meu pai está me olhando agora?” Uma das gurias respondeu, provavelmente que sim, porque eu sentia que ela ia dizer sim, era parte do conforto obrigatório.
Ao final do dia fomos dormir na nossa casa. E creio que estávamos exaustos. Também anos mais tarde minha mãe contou que tentou acordar-nos para o velório – uma decisão que lhe foi difícil pois definir se se deve levar ou não duas crianças pequenas, os dois filhos, a participar do ritual de despedida do pai em um caixão é sempre polemico. A mãe nos contou que o pai não queria que lhe víssemos em tal circunstancia – seu corpo vazio preenchendo o espaço de uma caixa; não queria que tivéssemos essa memória. De fato não a temos. Tentaram despertar-nos, conta a mãe, logo da controversa decisão, mas aparentemente estávamos demasiadamente sonolentos, e isso foi tomado como o sinal para não insistir em levar-nos ao velório.
Hoje são 30 anos depois daquele dia. Eu hoje não lembro da voz do meu pai, não lembro se tinha sotaque português espanholizado como dizem que tinha. Não lembro de suas manias e teimosias como dizem que tinha, nem do gênio forte que dizem que tinha. Lembro que lhe tínhamos muito respeito, algo de medo. Uma vez ele disse que jogaria nossos brinquedos pela janela se não arrumássemos a bagunça do quarto por onde estavam espalhados, e assim o fez! Mas era uma casa, não um edifício, então era coisa de apenas ir ao outro lado da parede junta-los da rua, mas ainda assim. Logo disso, sempre que ouvíamos o barulho do motor do fusca que ele dirigia, que reconhecíamos a uma quadra de distancia, corríamos para arrumar o quarto.
Hoje, 30 anos depois daquele dia, com quase a idade que ele tinha quando morreu eu escrevo do que lembro desde Manágua, da capital revolucionaria do país vizinho a nossa terra El Salvador, que inspirou toda uma geração de centro-americanos em lutas emancipatorias. “Si Nicaragua venció, El Salvador vencerá!”, dizia um dos slogans da guerrilha, da qual meu pai havia participado ainda antes que se desatara oficialmente a guerra civil no país que durou até 1992. E hoje há tanta decepção na Nicarágua 'neo-sandinista'... Toda Centroamerica fervia nos anos 80, quase que literalmente, e quase toda minha família paterna em função disso è hoje parte das estatísticas da diáspora salvadorenha pelo mundo.
Meu pai morreu antes do fim da guerra salvadorenha, antes do assassinato dos jesuítas da UCA, antes do fim da Guerra Fria, antes da queda do Muro de Berlim, antes da nova ordem mundial… Meu pai morreu quando em Nicarágua ainda se resistia em contra da “Contra”, quando ainda não havia decepção, senão esperança.
No extremo sul do Brasil, contudo, ele não tinha esperança contra a batalha pessoal contra aquele câncer que lhe consumiu lentamente. E ainda assim – isso também só aprendi anos mais tarde – minha mãe não retrocedeu nem um centímetro, nem durante nem depois. Acalmou, amenizou, confortou e sustentou todas as dores que ele sentia ao chegar em casa, calvo e exausto, das longas sessões de quimioterapia em Curitiba, que nos impediam até mesmo de sentar na cama junto a ele, pois seu corpo estava decompondo-se.
O natal de 1987, seu último evento social, foi uma reunião naquela mesma casa da ampla família materna, naquela época, cheio de crianças, irmãos, tios e primos, e eu o encontrei em um determinado momento, quando todos os demais estavam trocando presentes e rindo alto na sala, sozinho sentado numa cadeira de praia no pátio. Parece que sabia que aquilo se acabava, e estava fumando, a pesar de que há muito já não podia fumar, e efetivamente havia parado. Talvez por isso mesmo se permitia um último sabor do vicio, um ultimo momento de solidão consciente, uma despedida de si mesmo. Eu lhe perguntei por que ele não vinha pra sala com a gente, ele me abraçou e disse que já iria. Fiquei no marco da porta esperando-o, vendo-o de costas, sentado olhando para a escuridão. Ele se levantou, apagou o cigarro, e entrou.