Saturday 18 March 2017

"Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro"

Há nove dias eu aqui, novamente, pelas terras do não-triste-trópicos cumpri mais um aniversário, ou ciclo, ou girar em torno a dilemas da existencialidade... Não é intencional nem programado, mas noto que me passa, ainda, de pensar nas voltas do famoso/famigerado tempo quando assumo o calendário gregoriano para enmarcar esses supostos parâmetros de etapas.

Nesse exercício quase involuntário, me lembrei desse texto que reescrevo neste momento, que fiz pela mesma ocasião ao recém haver regressado a Recife logo de um  fantástico período de nove meses de PSDE-Capes na Costa Rica, no já velho 2016, e que não havia publicado nesse meu arquivo pessoal online (que nos próximos meses , by the way, cumprirá dez anos de yo y mis circunstancias...).

Fiz, então, um enjambement, e o (re)utilizo, especialmente porque o ordinarismo tipicamente cotidiano com que a data tem se passado pra mim nos últimos anos encontrou naqueles 360-e-picos-dias-imperfeitos do ciclo anterior a coincidência de ter sido o mesmo dia em que o quase-sagrado músico pernambucano Naná Vasconcelos morreu, ou regressou ou cumpriu sua passagem, tendo, portanto, merecidamente sido o grande homenageado neste carnaval 2017. Naná, que com  todo o talento e força cultural encarnava não só a alma (é, falemos em jargão cosmogênico...) de Pernambuco mas talvez de todo o Brasil, conduzia o poderoso encontro de Maracatus de Nação na abertura oficial da festa em Recife, sempre com mais de 500 instrumentistas e seus tambores, num espetáculo já tradicional e delicioso que desta vez fez-se para o mestre.

Se concreto, ilha, paranoia, coco, grafiti, dura, estridente, quente são palavras-chave de um pouco do que Recife e Olinda é pra mim, também há que se destacar, claro, que aqui é lugar de boa capoeira. Desde sempre onde eu vou a capoeira, que comecei a praticar no longínquo 1996 (sim!...), vai junto, ou eu vou buscá-la. E em lugar de bolo e parabéns, passei meu começo de novo ano no ano passado em mais um treino com o grupo que nestas me acolheu , o Chapéu de Couro,  do Mestre Corisco.

Em meio a energia, suor, ancestralidades e comunitarismo de sempre,  Corisco aproveita o ensejo da morte de Naná para relembrar a anedota do dia em que ele foi fazer uma visita ao Chapéu de Couro. O mestre conta – e lhe é típico contar histórias e fazer reflexões aos finais dos treinos – que lá no clube Barrozo, espaço que fica na Rua da Aurora, uma via parte do cartão postal da cidade, às margens do rio Capibaribe e um dos lugares onde o grupo pratica a capoeira há mais de 30 anos, Naná aparece sem aviso prévio, a convite de um amigo que também treinava ali. Toca à porta,  e quem lhe atende é um capoeirista do grupo que desceu as escadas, incauto, a pedido do mestre Corisco. Ao abri-lá, não esconde a surpresa de ser Naná em pessoa a sua frente.

Mais surpreendente ainda foi a reação do artista que, venerado e admirado por muitos, imediatamente se ajoelha, faz uma saudação com os braços e a cabeça ao chão,  e dispara: “Mestre! Muito obrigado pela capoeira! Por esse trabalho maravilhoso de preservação da nossa ancestralidade, pela força do nosso sangue africano expressa nessa arte!”, e etc, etc, ali, saudando, ajoelhado,  o companheiro de treino.

Perplexo e intimidado, o capoeirista tenta, gaguejando, esclarecer a situação: “Na-não, eu não, sou mestre, não. O mestre tá lá em cima”, e aponta para o alto. E Naná responde rápido ao gesto de humildade do companheiro: “Eu sei, mestre. O grande mestre tá nos céus, mas eu aqui quero saudar o senhor, mesmo, pela importância de ajudar a manter a capoeira viva”, sem entender que aquele se referia a Corisco, quem estava conduzindo o treino no primeiro andar do Barrozo, lá em cima...

Que bom ouvir histórias de Naná contadas por Corisco! Que bom a capoeira poder jogar! Que bom, eu mesmo, ‘vivir para contarla’... Agradeço.

E que bom, ainda, os amigos! Saindo daquele treino, no caminho de casa, que passa pelo não menos icônico Pátio de Santa Cruz, do ‘meu’ bairro da Boa Vista, tive outro privilégio: por acaso ali estão um time de hermanos, seleção de poetas, de artistas da ciência das ruas e da força das palavras, que tal como “murro guardado no punho”, admiro e respeito: nada menos que Miró, Fred Caju, e Adilson. Agradeci novamente, pelas coincidências dos grandes encontros que renovam o espírito da rebelião.
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Parodiando a Daaniel Araújo:
"Foda-se Pelotas, você tem fodido o meu coração"

Isso relatado acima, como dito, foi no ano passado. Neste, foi outra história, de 15 whatsapp´s, duas msgs no Skype e três e-mails. O único telefonema, isto é, contato viva-voz pela data, foi o da minha mãe. Eu contei. Porque achei/acho curioso as implicações dessa ordem, das lembranças e importâncias atribuídas a datas pessoais, ao não se estar no facebook. Pois desses números, apenas seis pessoas eu conheço há mais de doze anos, ou seja, são da minha vida pré-jornada a Ítaca, são da minha cidade natal.

Além de dar o que pensar, claro, sobre o papel crescente das redes sociais como um tipo de memória externa também para relações interpessoais – dado que são elas hoje quem nos avisas quem cumpre mais um aniversário e, portanto, a depender da nossa relação com a pessoa em questão, mandamos uma saudação (mesmo que as vezes quase mecanicamente) – esse levantamento juvenil me chamou a atenção em particular pelos perfis desses amigos que lembraram e se deram o gentil trabalho de manifestar-se. O fato de eu ter acabado de regressar de um período de alojamento, sentindo o toque de se encolher, de seis meses, seiscentas emoções-atribulações, seis milhões de reflexões-decisões e obrigatórias produções em terra natal nos pampas, logo de onze anos sem estar por lá por mais de 30 dias, sim me fez pensar...

Isto é, vi e revi muita gente de primeiras experiências, primeiros trabalhos, primeira formação universitária, primeiras saídas boemias, primeiros debates políticos e etc que hoje dão de ombros pra se estás ou não estás, fostes ou ficastes, cumpristes mais um aniversário ou morrestes. Não é por mal, talvez, mas é mal, me parece, pois revela as ressignificações desumanizantes, ou então simplesmente a insignificância que atingistes, o que é o mais provável...

Talvez, também, valorizemos demais as “primeiras” coisas da vida, o que também é provável. Mas é no mínimo curioso observar quem, e porque, se lembra, sem Facebook pra avisar, do aniversário de alguém. Deveria ficar lisonjeado ou entristecido ou blazé com precisas 20 msgs de lembrança (destaco de novo, sem facebook!) pela data, sendo que a grande maioria desses é de quem está na minha vida apenas nos últimos cinco anos? O ‘real’ e o ‘virtual’ não tem fronteiras tão porosas ainda, como se tem dito ultimamente? A mediação virtual das relações ainda não dá conta de presença, intimidade e intercâmbios diários físicos-diretos? Ou simplesmente segues caindo no abismo do esquecimento, e é melhor aproveitar a queda-livre (que aliás mucho me gusta!) e, como a maioria, não olhar pra trás?


Ainda mais provável é que isso seja uma reflexão/comentário inútil, né? Mas é inevitável que essas pessoas, do “passado distante”, que se lembram qual é o dia em que nascestes e param um minuto do seu cotidiano veloz e opressor (o qual sempre destacamos pra tudo, usando-o de justificativa pra tudo...) pra te mandar um “felicidade-parabéns”, simples ou cheio de intimidade, sejam vistas/lembradas com sentidos particulares.  Também, de novo, agradeço, bem como a todxs demais, mais recentes na jornada, que aqui estão. ☆★

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