Thursday, 27 August 2015
A urgência da América Central: violenta, violentada e paranoica
·
Por
Aleksander Aguilar - publicado em O ISTMO , NOTA DE RODAPÉ e Grupo de Estudos Americanista Cipriano Barata
Después de ver como se mueven las guerras y las
guerrillas
tu crees que le voy a tener miedo a tu
pandilla?
(Adentro - Calle 13)
Tomei
um ônibus em El Salvador para uma longa viagem até a Costa Rica, atravessando
quase todo o istmo centro-americano, na madrugada deste último 28 de julho.
Durante todo o trajeto de 20 horas, interrompido pelas descidas obrigatórias
fronteiriças, pensava nas impressões das duas últimas semanas que passei no “pulgarcito de América”, logo de sete
anos sem visitar a terra paterna, e na necessidade de escrever sobre a sensação
de paranoia que testemunhei entre os conterrâneos.
Pequenos,
e significativos, exemplos do cotidiano: andar armado no país resulta quase
óbvio, e em qualquer estabelecimento comercial, qualquer mesmo, desde uma
farmácia até uma sorveteria, haverá dois seguranças com o armamento bem visível
no intento de intimidar. Durante um café, numa reunião acadêmica, no jantar familiar
com pupusas, os tópicos de conversa, naturais
e quase banalizados, são constantes: o perigo, o medo, a morte. Jornalistas,
poetas, professores do país escrevem sobre assassinatos e decapitados. O sangue
está nas artes, nas mentes e no ar salvadorenho.
E
nesse estado em que se encontra o país de Roque Dalton, a mobilidade é uma
questão-chave. Se você não tiver carro, você está sob um risco ainda maior do
que se o tivesse. Todos temem parar num semáforo em qualquer hora do dia e mover-se
a pé, mesmo em curtas distâncias, também vai seguido por constante sensação de
insegurança, ao ponto de as pessoas terem receio de parar para dar informação para
quem simplesmente pergunta por uma localização. A desconfiança é generalizada.
Temem-se,
porém, ainda mais ônibus. Precários, para não dizer patéticas latas-velha, a
frota de ônibus do país, controlada por consórcios de empresários infiltrados e
sequestrados pelo crime organizado, são alvos diários de assaltos aos
passageiros e de extorsões aos motoristas. A verdade é que El Salvador funciona
sob um toque de recolher tácito. Na própria região metropolitana, a maioria das
linhas desses cacos ambulantes que chamam de transporte público tem suas
últimas viagens às 19h! Ainda se encontram algumas rotas até pouco passado das
20h, e muito raramente às 21h, horário em que apenas os mais bravos, e/ou sem
outra alternativa, atrevem-se a subir.
Pais
mais zelosos literalmente proíbem os filhos de fazerem suas atividades do
dia-a-dia em ônibus, preferindo sempre pagar caro por um táxi. Saídas de lazer
e entretenimento, tão corriqueiras como ir ao cinema, são absolutamente
estritas a um detalhado planejamento sujeito a boas companhias e esquemas de
mobilidade, que significa dispor de um taxista de confiança com horário da
corrida previamente arranjado, porque nem o taxista vai a qualquer lugar nem a
qualquer hora por uma corrida, nem o passageiro aborda qualquer taxi que cruza
pelas ruas. Ninguém confia em ninguém, salvo os fortes laços familiares e de
amizade, duramente cultivados e celebrados. A sociedade salvadorenha vive
encarcerada em si mesma.
Enquanto
reflito sobre tudo isso – que é uma conjuntura piorada mas semelhante a que
vivi morando em El Salvador em 2008 – mais
um choque de uma realidade em curto-circuito: no mesmo do dia em que viajei o
país amanheceu com a notícia, que é sintoma não de um processo mental paranoico
e sim de uma realidade quase surreal, da proibição da circulação do transporte
público no país inteiro por ordem dos líderes das forças do crime organizado no
país (as chamadas “maras”, forma
coloquial para o espanhol pandillas)
Barrio 18, Mara Salvatrucha, e a mais recente, 18 Revolucionários – um racha da
primeira e que já se consolidou com a terceira força criminal do país.
A paranoia fundamentada
- Não foi a primeira vez que as pandillas
desestabilizaram El Salvador. Em setembro de 2010 ameaçaram com chamadas
telefônicas, agressões nas paradas de ônibus e folhetos aterrorizantes
entregues de mão-em-mão. Dessa vez os mareros
não apenas ameaçaram, mas executaram logo de saída nove motoristas, e os
empresários e os funcionários suspenderam completamente o serviço. O país
parou. Até a sexta-feira 31 de julho, o boicote e/ou a sabotagem resultaram em nove
motoristas assassinados, centenas de unidades de transporte paralisadas e
várias incendiadas, serviços hospitalares comprometidos e aulas canceladas,
milhares de salvadorenhos amontoados em precários veículos clandestinos e
viajando sobre custodia policial e militar. Imediatamente à ação das maras, o governo salvadorenho colocou
600 efetivos militares nas unidades de transporte do país para somar-se aos já
7500 soldados que estão diariamente nas ruas em atividades de segurança
pública, como parte da verdadeira atitude de guerra que existe hoje no país
entre o governo e as pandillas.
Logo
de cinco dias de estado de emergência no país, 90% das rotas de ônibus havia
voltado às atividades, mas o Ministro de Segurança, Benito Lara, manteve o
estado de emergência, e a militarização do cotidiano. O emprego das Forças
Armadas na segurança pública já é uma praxe na América Central, e excede em
muito, e cada vez mais, sua implementação como uma política pública dita
necessária. Esta “semana del paro” em
El Salvador que o diga. Os números, porém, são de guerra não apenas no
território cuzcatleco: em Honduras, 2.000 soldados das tropas do exército estão
nas ruas; na Guatemala são 4.500 soldados e em El Salvador, além dos mais de 7
mil soldados no cotidiano, e outros 600 convocados pela emergência do
transporte, foram suspendidas as licenças da Policia Nacional e o efetivo total
chamado chega a 23 mil agentes.
A
realidade institucional de El Salvador hoje é de extrema polarização entre as mesmas
forças políticas que há 30 anos também se enfrentavam, mas sob hostilidade
bélica: a ARENA, Alianza Republicana
Nacionalista, reduto da uma direita conservadora e reacionária, e a FMLN, a ex-guerrilha Frente Farabundo Marti de Liberación Nacional, convertido em
partido político como parte dos Acordos de Paz alcançado para barrar a
sangrenta guerra civil que durou de 1980 a 1992. Além da “paz”, a diferença é
que logo de 20 anos ininterruptos de ARENA no governo, hoje é a FMLN quem dirige
o país. Isso leva a muita especulação sobre a possibilidade de que as pandillas tenham sido partidariamente
instrumentalizadas para causar desgaste político.
O poder pandillero
– Atuando praticamente como uma terceira grande força política no país, as pandillas já obtiveram capacidade de
articulação conjunta, pese a mortal rivalidade entre elas, como na “trégua”,
até hoje não reconhecida pelo governo salvadorenho, pactuado com o Poder
executivo entre 2012 e 2015, e que resultou num período de inegável diminuição
dos homicídios na pequena nação assolada pela cultura da violência. Portanto o
ocorrido nessa semana em El Salvador, histórica desde várias formas de análise,
é uma potente demonstração de força dessas gangues, e uma forma de buscar ser
ouvidos, num contexto sem precedente de repressão contra elas.
Os
governos da ARENA implementaram, e foram muito criticados, os planos Mano Dura, e Super Mano Dura, para combater as pandillas, que não conseguiu barrar sua expansão e serviu para sua
evolução, mas a estratégia atual do governo é ainda de maior peso repressivo. Parece
que as gangues quiseram demonstrar que mesmo com todo o atual investimento em
operações militares policiais sua capacidade para desestabilizar a sociedade se
mantem, e assim o fizeram. O prestigioso periódico digital salvadorenho El Faro
cita os dados oficiais sobre o atual tamanho do fenômeno em El Salvador: 60 mil
membros que junto com seu entorno social (colaboradores, simpatizantes,
família) chega a meio milhão de salvadorenhos, ou 8% da população do país. O
caminho único da repressão dá mostras de ser inviável, pois as pandillas tem suas origens no agoniante
processo social desigualdade-migrações-deportações-violência que configura a
própria da sociedade salvadorenha. Em muitas comunidades e bairros do país, a
figura do pandillero é uma referência
de sucesso que faz com que cada vez mais jovens, com famílias desagregadas pela
migração, em condição de pobreza, sem perspectivas e profunda precariedade
estrutural diante da ausência do Estado, queiram incorporar-se.
A
atualidade da tragédia salvadorenha é particular pelo absurdo que a situação
dessa semana representou, mas análoga pelo menos nesses países do chamado
Triângulo Norte da região centro-americana: El Salvador, Guatemala e Honduras. Enquanto
assistimos o recrudescimento das grandes tensões geopolíticas de âmbito global
representado, entre outros, pelas guerras na Ucrânia, pelas reações do
radicalismo islâmico no Ocidente e pela desintegração da experiência europeia a
partir da humilhação grega, há no nosso próprio continente uma longa e arrastada
crise que se visualiza num dramático mosaico de conflitos sociopolíticos – que
entre as causas mais recentes destaca-se a violenta espoliação promovida pelo
capitalismo neoliberal na região – que atentam contra a própria dignidade humana
e flertam com o caos no “invisível” espaço centro-americano, e nem quando toma
proporções de grotesco, como nesse momento, é abordado pela mídia corporativa
tradicional em nível internacional, e no Brasil em particular, ainda tão alheio
à América Latina em geral.
A
Organização das Nações Unidas considera o Triângulo Norte a região mais
violenta do mundo há vários anos. Mas a violência na América Central não é
apenas um problema social, senão um desastre político que consome todos os dias
e ininterruptamente a carne, o espírito e a sobriedade mental dos
centro-americanos, talvez com densa particularidade em El Salvador, epicentro
da organização das pandillas que
ocuparam quase todo o istmo e com representações organizativas e laços de
origem na Europa e na América do Norte. Como assinala o jornalista basco Unai
Aranzadi, citado por Andres Ramirez no site brasileiro especializado em América
Central, O Istmo (www.oistmo.com) , “analisando a
realidade a partir do território, e de uma perspectiva histórica, quiçá seria
mais justo qualificar esta sociedade de violentada. Desde o genocídio do mal
chamado “descobrimento”, até o estabelecimento do neoliberalismo, a América
Central, tem sofrido terrivelmente, e não é coincidência que fenômenos
ultraviolentos aparentemente únicos e desprovidos de ideologias, como por
exemplo as maras tenham surgido nesse
espaço e tempo”.
Há
paranoia, particularmente, em El Salvador, mas quem poderá dizer que sem
fundamento? Não é raro, e se fez ainda mais comum durante esses dias, ouvir que
o país voltou ao estado de guerra de 30 anos atrás, com dinâmicas sociais
típicas daquele período. Mas as novas gerações não conhecem apenas dois grupos
em conflito, senão um medo generalizado e permanente atravessado em várias
esferas do cotidiano. E retroalimentado constantemente pelos meios de
comunicação. As capas dos principais jornais do país diária e sistematicamente apresentam
manchetes e fotos sobre crimes e conflitos realizados pelas gangues.
No passado recente a luta armada foi entendida
por certos setores da sociedade como a única forma de serem ouvidos diante do
fechamento de espaços políticos. Hoje as pandillas
são protagonistas de uma guerra social e através da força cada vez mais se
fazem atores políticos que exigem que os governos as escutem. Como consequência, a epígrafe utilizada na
abertura desse texto, uma frase de uma canção da banda porto-riquenha Calle 13,
ao tempo que é um estímulo a resistência, tem cada vez menos ressonância na
realidade salvadorenha. O povo salvadorenho conhece como poucos todos os
comportamentos, as dores, e os arrasos de uma longa hostilidade bélica entre
grupos confrontados, mas hoje está cada vez mais sufocado, temeroso e refém da
sua realidade gerada pelo próprio pós-guerra.
·
Aleksander Aguilar é jornalista, linguista e
doutorando em Ciência Política. Coordena a plataforma-rede O ISTMO (www.oistmo.com)
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