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O ISTMO e no blog
NOTA DE RODAPÉ
Ah, Costa Rica! O que teria sido de nós, brasileiros, nesta
Copa sem ti. Pensar na tua história neste Mundial, especialmente depois do
trauma do Brasil na semifinal “Mineiraço”, é um alento e uma inusitada forma de
olhar a toda nuestra América. Exemplo, sim, que futebol mistura-se com
política, que só aumentou o imprevisto, mas merecido, reconhecimento da tua
seleção por parte desta “impávida” nação sul-americana – e por extensão do teu
país, e por ampliação de toda a região da América Central.
Para mim, filho de salvadorenho, a Costa Rica era, sim, a
América Central no Mundial! Admito que cada vez que eu ouvia a massa gritar em
coro, meu orgulho centro-americano silenciosamente se manifestava:
"¡oé-oé-oé-oé, ticos, ticoooos!". Eram os anfitriões, nas ruas
durante as partidas costarriquenhas, entoando o nome, com tanta empolgação e
carinho quanto com sotaque brasileiro, que para eles é o apelido da seleção
costarriquenha – a equipe de um país da América Central! Mas não, não,
compatriotas. Ticos é um gentilício coloquial para todo o povo da Costa Rica,
algo que ocorre com vários países centro-americanos. Os hondurenhos são os
Catrachos, os salvadorenhos são os Guanacos, os guatemaltecos são os Chapines,
e cada um desses apelidos possui uma explicação sociohistórica.
Quem no Brasil, além de um grupo muito específico como
aqueles que estudamos esta região quase invisível do mapa-mundi, saberia disso
ou se importaria? No Brasil, nação onde a paixão por futebol não é apenas um
simples cliché, a seleção desse país centro-americano tornou-se um xodó nesta
Copa, pelo incontestável brilhantismo do seu desempenho, deixando o campeonato
de forma invicta após enfrentar, e vencer a maioria, grandes potências do
esporte mais popular do planeta. Ao derrotar Uruguai e Itália, empatar com
Inglaterra, eliminar a Grécia e levar a Holanda para a decisão nos pênaltis
numa quarta-de-final, a imprensa mundial aborrecidamente insistiu que ninguém
imaginava que a seleção deste pequeno e “exótico” país iria tão longe num
campeonato de grandes potências esportivas. E para a maioria da mídia aqui no
Brasil, o importante era justamente esse feito. E só. Ao ponto de para muitos a
Costa Rica ser uma seleção “caribenha” (afinal, América Central e Caribe é tudo
igual, tudo perto por ali no mapa...)
Ocorre que o significado da participação da Costa Rica neste
Mundial nunca fez tão evidente a oposição ao adágio popular de que política e
futebol não se discutem. Na América Latina discutem-se, inclusive e de
preferência, conjuntamente. Importa mesmo é constatar que importantes meios de
comunicação no Brasil destacam de repente a história e os índices de
desenvolvimento deste país da América Central. Surpresa mesmo, e satisfação, é
ver os brasileiros pela primeira vez curiosos com fatos como a Costa Rica não
ter exército (mais de 60 anos de sua extinção) mas ter um ganhador do Prêmio
Nobel. O Brasil, via futebol, desenvolveu quase sem querer um sentimento de
latino-americanidade, expresso neste caso precisamente pela invisibilizada
região centro-americana, e demonstra ter mais interesse em saber quem são esses
países do istmo.
Muito futebol, muita política
E por isso o atual futebol da Costa Rica fez-se uma dupla
metáfora nessa fronteira futebol/política: enfeixa por um lado o paralelo das
relações geopolíticas centro-periferia no mundo com o das disputas dos grandes
atores globais do futebol no contexto – quadrado – dos meganegócios desse
esporte na globalização hipercapitalista; e por outro o paralelo dos imbricados
debates entre nacionalismos e identidade nacional com a questão da integração
regional centro-americana e a projeção internacional dessa região.
A Costa Rica é um país da América Central. E enquanto
através desse momentum no esporte demarcou para si mesmo uma janela de
visibilidade e presença nas cartografias geopolíticas desse mundo cada vez mais
multipolar – em que a articulação entre países do chamado Sul Global torna-se
uma via para um sistema internacional mais igualitário – trouxe a reboque para
uma pequena, mas importante, vitrine toda a região deste istmo socialmente
convulsionado. Aos poucos, os centro-americanos passaram a ver o país Tico, que
deixava mais e mais potências esportivas boquiabertas, como um representante de
todos, permitindo o mundo ver que nem só de terremotos e guerras civis vive uma
região. Devagar, porque, claro, internamente na América Central há rivalidades,
ranços, já que historicamente as relações no istmo viram-se em altos e baixos,
com divisões por conflitos políticos e limítrofes.
Entende-se. Em nome de uma suposta identidade regional, um
gaúcho colorado torceria para o Grêmio durante uma Libertadores, e vice-versa?
Um pernambucano torcedor do Sport apoiaria o Náutico num campeonato brasileiro,
e vice –versa? De sociologia do futebol deixa-se para os especialistas, mas não
se pode negar a força desse esporte em todo o continente como fator de unidade.
No caso da Costa Rica, o país verdadeiramente possui diferenças enquanto Estado
democrático de direito bem marcadas de vizinhos como os do chamado grupo CA-4.
El Salvador, Nicarágua, Guatemala e Honduras, o que coloca o próprio debate
sobre centro-americanidade e integração regional do istmo como questão.
A América Central hoje
Designada por uma espécie de destino geográfico, uma das
especificidades da América Central no contexto latino-americano é justamente a
de uma região de trânsito entre os dois oceanos, posição que marcou sua
história sociopolítica no passado e lhe influencia no presente, dando-lhe peso
geopolítico e características identitárias que a colocam em condições
particulares para converter-se em um âmbito que merece análise especifico.
Mesmo na América Latina, contudo, esse istmo é frequentemente abordado de forma
marginal ou omissa, tangencial ou superficialmente, deixando-se de tratar,
precisamente, seus singulares problemas e especificidade sociopolítica no
continente. É a situação que levou o crítico literário guatelmateco Arturo
Arias a caracterizá-la como “una región marginal dentro de la marginalidad”.
A chamada América Central, a que o poeta Pablo Neruda
denominou “la dulce cintura de América” tem pouco mais de 500 mil km² (o Brasil
sozinho tem mais de oito milhões de km²) abrigam sete Estados – (Belize, Costa
Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e Panamá) com uma população
de quase 50 milhões de habitantes. Atualmente, cerca de 47% dos
centro-americanos vivem em condição de pobreza e 18.6% em pobreza extrema. Mais
de quatro milhões de centro-americanos e descendentes moram fora do istmo,
especialmente nos Estados Unidos. Ditos emigrantes enviam anualmente cerca de
US$ 13 bilhões aos seus familiares nos países de origem, o que no caso de El
Salvador, por exemplo, chega representar 17% do total do PIB do país.
Ao longo da história centro-americana, e depois da
declaração de independência em 1821, o tema da integração regional – primeiro
em suas manifestações unionistas e mais tarde nos esquemas comerciais,
econômicos, políticos e institucionais – tem sido uma constante. No entanto,
nas últimas décadas, especialmente depois do estabelecimento do Sistema de la
Integración Centroamericana (SICA), em 1991, o interesse pelo processo integracionista
aumentou e tem chamado a atenção de um número crescente de setores
sociopolíticos e econômicos no istmo. Hoje a violência e as migrações, conforme
entende o acadêmico da Guatemala radicado na Costa Rica, Rafael Cueva Molina,
são grandes e poderosos traços que caracterizam a região e que tem como uma de
suas causas primordiais as guerras civis dos anos 1980, embora certamente não a
única. As guerras civis centro-americanas conformam uma fase arrebatadora da
história sociopolítica do istmo cujas consequências constituíram-se como o
principal marco contemporâneo para os sentidos de centro-americanidade.
Essas diversidades de sentidos expressam-se nessa diferença
da Costa Rica do seu entorno. Os ticos queixam-se das deficiências dos seus
serviços sociais básicos, como saúde e educação, das má-condições das suas
estradas, persistência da desigualdade e da pobreza e, mais recentemente,
igualmente a outros países centro-americanos, da crescente força do
narcotráfico internacional no seu território. Ainda assim, a Costa Rica é um
país chamado de renda média, como o Brasil, e tem alguns melhores índices
econômicos e sociais do istmo e de todo o continente, com uma expectativa de
vida alta de 79,4 anos (a do Brasil é de 74,6) e uma média de homicídios baixa
de 8,9 por 100.000 habitantes (a de Honduras é dez vezes maior). O país atrai
pela sua estabilidade política, tendo recebido diversos exilados políticos das
ditaduras anos 70 e 80, tanto da América do Sul como dos vizinhos da América
Central que efervesciam em guerras. Foi classificado em 2011 como o de maior
liberdade de imprensa da América Latina, ocupando a posição 19 em nível
mundial, de acordo com o ranking da Organização Repórteres Sem Fronteiras, e
impressiona até hoje aqueles que ainda desconhecem que aboliu o seu exército em
1948, em nome de uma proposta, fruto de anos de trabalho, de aumentar a
participação cidadã e evitar golpes militares de estado.
Contudo, a Costa Rica ainda não conseguiu articular
respostas para alterar a tendência dos últimos anos de lentos e incertos
progressos em desenvolvimento humano. Como lembra, entretanto, a acadêmica e
analista política salvadorenha, Carmen Elena Villacorta, chama a atenção sobre
o atual contexto político centro-americano que os partidos das chamadas esquerdas
em vários países da região, como El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, algumas
antes guerrilhas e agora no poder pela via eleitoral, movam-se cada vez mais ao
centro ao verem-se confrontadas por sociedades civis cada vez mais plurais e
diversas, mais politizadas e exigentes, e menos leais em termos ideológicos,
conscientes do poder político do voto.
No momento, por cima das limitações, sua seleção de futebol,
“os filhos prediletos da nação”, como foram chamados no país, mantem ainda mais
por cima a autoestima dos ticos, e de toda a América Central. Porém, acima
ainda do futebol, a Costa Rica, e todo o istmo, veem-se hoje num lugar em que,
como assevera o jornalista e acadêmico costarriquenho Andrés Mora Ramirez,
nunca, desde a sua independência da Espanha, a região teve que enfrentar uma
necessidade tão marcada de seguir por entre diferentes padrões de crescimento e
de desenvolvimento para buscar sua inserção internacional.
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Aleksander Aguilar é jornalista, doutorando em Ciência
Política e Relações Internacionais, candidato a escritor, e viajante à Ítaca,
especial para o Nota de Rodapé