Wednesday 6 July 2011

Não, mestre. O senhor é um homem transcendental


O crítico literário, professor, mestre de todos nós, Antonio Candido, faz nesta quarta-feira a conferência de abertura da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Foi sua amizade com Oswald de Andrade que o fez aceitar o convite para participar do encontro.


A nona edição da festa literária homenageia Oswald (1890-1954), intelectual ícone do modernismo brasileiro, a quem o mestre chamava de "Oswaldo".


(Entrevista completa do mestre na Folha Ilustrada aqui.)


"Considero minha vida intelectual completamente encerrada. Sou um sobrevivente. Não dou entrevista, não dou curso, não publico mais nada. Revelo aqui se vocês não contarem para ninguém, mas ainda escrevo a máquina. Sou um homem do passado, encalhado no passado. Não tenho computador, não tenho e-mail”, declarou.



Eis um brevíssimo exemplo das reflexões que provoca esse “homem do passado”, entre o lógico e o mágico:


Nos quatro ou cinco séculos que decorreram da entrada mais ou menos direta dos povos primitivos para o convívio dos povos civilizados, eles têm sidos considerados pendularmente como brutos e como seres privilegiado, através de concepções que assumem diversos matizes. Há cerca de meio século apareceu um modo renovado de encará-los como bichos, com todas as ressalvas da ciência e da filosofia. É a teoria famosa de Lévy-Bruhl, segundo a qual a mentalidade do primitivo seria, por assim dizer, qualitativamente diversa, na medida em que subordina a visão do mundo, não princípios lógicos, como nós, mas a uma espécie de indiferenciaçao entre sujeito e objeto, entre as categorias e os corpos, de modo a definir um espírito “pré-lógico”, incapaz de abstrair e de observar o princípio da contradição.


Esta concepção é sedutora. Permite interpretar fenômenos aparentemente obscuros, conserva em torno do primitivo um halo de mistério, e não há dúvida que contribuiu para investigar os aspectos alógicos da mente humana. Mas, pouco depois do seu êxito, Malinowksi, ao invés de compulsar relatos de viagem ou repositórios de folclore, foi viver dois anos numa aldeia de melanésios, e os seus trabalhos fizeram ver que, relacionada ao quotidiano, a bela construção era falaciosa. Os povos primitivos distinguem, essencialmente como nós, o lógico e o mágico, embora na sua mente ambos formem configurações diversas, e o mágico sobressaia proporcionalmente mais do que o lógico no tecido da sua existência.


Quando lança ao mar uma canoa, como toda sorte de esconjuros para que os espíritos da flutuação a façam sobrenadar contra os espíritos da submersão, o artesão de Sinaketa não supõe que ela navegue por obra e graça deles. Conhecendo empiricamente os princípios da flutuação e os processos adequados para os utilizar, jamais lhe passaria pela cabeça pegar um tronco e jogá-lo na água, confiado em que apenas a força dos espíritos o manteria emerso. Ele aplica rigorosamente a técnica, mas crê também na eficácia indispensável do ritual mágico. Forçando a nota, diríamos que, de modo parecido, o engenheiro moderno levanta cientificamente a sua ponte e pede a um santo que a mantenha de pé. E talvez (como já foi lembrado), o historiador do ano 3000 venha a dizer que os civilizados do século XX lançavam os seus navios com a bênção de um sacerdote e a quebra ritual duma garrafa de vinho, acreditando que boiavam graças a estas práticas. No homem de hoje, perduram lado a lado o mágico e o lógico, fazendo ver que, ao menos sob este aspecto, as mentalidades de todos os homens têm a mesma base essencial. Num livro recente, diz Lévi-Strauss, com exemplos sugestivos, que em muitos casos o primitivo revela uma capacidade de racionalização e de observação sistemática maior do que a do civilizado. O que a muitos pareceu incapacidade de generalizar pode ser requinte analítico, e certas formas em que realmente ele dissolve o particular numa aparente indiferenciaçao manifestam a capacidade generalizadora de cunho ideológico, que lhe foi contestada.


Isso retifica as teorias da mentalidade pré-lógica, mas pode reconduzir de maneira algo simples ao velho postulado do espírito humano igual em toda parte. Ora, ambas as posições são modalidades da falácia antropocêntrica – seja por verem no primitivo um bicho quase de outra espécie, seja por quererem reduzi-lo mecanicamente à nossa imagem, dispensando o esforço de penetrar nas suas singularidades. A verificação de que as culturas são relativas leva a meditar em tais singularidades, que seriam explicadas, não à luz de diferenças ontológicas, mas das maneiras peculiares com que cada contexto geral interfere no significado dos traços particulares, e reciprocamente, - determinando configurações diversas. Assim, a atitude correta seria investigar a atuação variável dos estímulos condicionantes, pois se a mentalidade do homem é basicamente a mesma, e as diferenças ocorrem sobretudo nas suas manifestações, estas devem ser relacionadas às condições do meio social e cultural. Isso explicaria por que os comportamentos, as soluções, as criações variam tanto no primitivo e no civilizado, sem que se possa falar em mentalidade pré-lógica.


Trecho de “Estímulos da Criação Literária”, páginas 51-53, em Literatura e Sociedade, de Antonio Candido

2 comments:

K said...

Adorei, adorei, adorei.. com sua licencinha vou copiar!
Beijo

Aleksander Aguilar said...

Be my guest! beijos