Sunday, 21 August 2016
Mais da Satolep que te recebe, ou um pouco da local digna raiva
Mais de quatro horas numa delegacia de polícia para fazer o registro de uma ocorrência criminal. Um ato político, eu diria, gastar-se tempo e paciência, em fazer constar nas estatísticas oficiais do Estado a narrativa, já conhecidíssima dos escrivães da Civil, de mais um assalto violento com arma de fogo na cidade de Pelotas, na zona do Porto, claro – este bairro óbvio para a criminalidade desta cidade cada vez mais inóspita, e certamente tão umidificadora quanto brutalizante, do extremo Sul do Brasil onde nasci; não menos hostil, atualmente, do que muitas outras deste pais, dizem muitos. Em uma cidade do tipo universitária (cuja comunidade se concentra no Porto), de pouco menos de 400 mil habitantes, de uma complexidade étnica e social bastante razoável, e que se notabiliza pelo aumento constante e sintomático da violência multifacetada que é resultado de grandes (des)ordens políticas, sair ileso de uma agressão com arma apontada na cara já “é de botar as mãos aos céus”, também dizem. Foi “só” celular e alguns 60 pila. E ainda com o bônus, fruto do risco assumido de fazer uma argumentação com o indivíduo que me aponta o revólver, de ter ficado com os documentos. É, “o bagulho é doido”, “a vida é loka”, e “a coisa não tá fácil pra ninguém”, nem pra quem se dispõe ao trabalho de ir pessoalmente à repartição pública, praticamente para prestar um serviço gratuito ao Estado, experienciando delegacias com pouquíssimo staff, mal-organizadas, de estrutura física precária, com filas enormes e atendimentos demorados, apenas para colocar mais um número nos alfarrábios da Secretaria de Justiça e Segurança do RS (atualmente governado por uma direita patética) de forma a evidenciar a inadiável necessidade de ações, de resoluções, de reações. E nem pra quem está do outro lado do guiché, ouvindo que o fogo do circo está cada vez mais alastrando-se, trabalhando em condições sucateadas, cumprindo burocracias pra também tentar acreditar que a obviedade dos números somada a indignação em algum momento resultarão em mais do que uma mesma repetida história nos arquivos. Que o valor da vida está banalizado já é uma afirmação cliché. “Tás demorando muito, magrão, vou te estourar aqui mesmo”, o da vidalokagem afirma autoritário e quase solene, enquanto convenço-o, retirando os poucos e baixos bilhetes da niqueleira, a me deixar com os cartões de identificação e bancários fundamentais nesse tipo de vida urbanoide do qual também somos reféns. E que a zona do Porto é um dos grandes, talvez principal alvo da criminalidade em Pelotas, também é uma obviedade. É um problema de falta de policiamento? Também. Segundo o grosseiramente apurado são apenas 4 (quatro) viaturas pra cobrir toda a cidade. Toda! Mas é claro que também há o tráfico, a influência do consumo de crack, as disputas das gangas rivais cada vez mais evidente e aterrorizando a cidade, os presídios de péssima estrutura de onde lideranças do crime fogem cinematograficamente ou lá permanecem exigindo celulares e outros recursos – desses subordinados que saem às ruas assaltando - para controlar seus negócios. Somemos os fatores subjetivos da importância – ou necessidade – do jovem de periferia ter status dentro dessas organizações em ascenso enfrentando e matando sem pudor e com orgulho, e as segregações sociopolíticas clássicas marcadas pelos muros invisíveis entre os bairros pobres e o centro desta cidade, chegando até a simples influência do maldito consumismo que leva ao desejo de uma roupa de marca melhor, ou smartphones mais avançados, custe o que custar. E hoje em dia em Pelotas isso não custa muito. “É mu-mu, tio!”(marca de doce de leite pastoso), dizem os guris que se dedicam a essa atividade, principalmente nessa região da cidade, que concentra os campi da Universidade Federal de Pelotas e da Universidade Católica de Pelotas. Ou seja muito fácil, atacar a comunidade universitária, e também outros e outras trabalhador(as) de qualquer classe social, em deslocamentos profissionais, de lazer ou residencial, em toda essa zona. Sem polícia, sem medo, e sem razão para não cometer, esses crimes – em que já é comum envolver morte ou pelo menos ferimentos graves – tratam-se quase de uma simples coleta. Dois, cada um em uma bicicleta, ou em uma mesma moto, com revólver ou pistola mesmo (arma branca já é demodê) abordam transeuntes, qualquer deles – homens, mulheres, grupos, sozinhos, não importa, com o conhecido “Perdeu, perdeu!” e exigem o que quiserem, fazem o que quiserem. Se saíres vivo, agradeça tua sorte. Perdemos mesmo. Todos. Aqui estamos, e assim está, a Princesa do Sul, a Satolep, a terra do Sopapo, e todas as cidades médias e grandes deste país, e o nosso cotidiano – tal qual tantos outros lugares latino-americanos, que nos ferem a alma e nos fervem a digna raiva. O que virá, com potência, não será só de um lado, pois muitos lados vão cada vez mais fazer questão de se configurar, disso também podemos estar certos em esperar.
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