De carnaval para a pauta política internacional, também vou dar meu pitaco sobre tão essenciais eventos que temos acompanhado diariamente na mídia. A Revolta Árabe confunde e parece não ter fim. Os acontecimentos iniciados em dezembro de 2010 na Tunísia e que na metade de fevereiro deste ano derrubaram o governo do Egito, fez-se tao grande que se move do Marrocos até lugares o Bahrein, do Atlântico até os limites da Ásia.
O rótulo de “primavera árabe” vem de alguns analistas que entendem que esses eventos podem representar a maior redistribuição de forças no tabuleiro geopolítico global desde o fim do comunismo no Leste Europeu.
Mas o termo já havia sido usado no começo de 2005 quando se acreditava que os efeitos da invasão do Iraque poderiam resultar no surgimento de democracias no Meio Oriente amigáveis ao Ocidente. Como a coisa não se moveu nesse sentido, o termo foi deixado de lado, e ressurge agora no contexto de ebulição que se vive na região.
Uma revolução se caracteriza pelo estabelecimento de um novo começo. As revoltas em curso conformam um novo começo?
O atual momento árabe pode ser entendido como um exemplo da luta pela dignidade humana. Os árabes dizem basta! Mas por que os protestos só ocorrem agora? Por que desta maneira? Lamentavelmente não enfocarei nessa análise o crucial fator internet no processo, mas cada vez mais a revolução digital que temos o prazer de presenciar (e que os maiores de 25 viram nascer) reforça essa sua mesma natureza revolucionário e inclusive seu poder revolucionário. Para lerem alguns comentários sobre esse assunto podem acessar meu texto sobre o Wikileaks, AQUI mesmo no blog.
Se se trata de considerar a real dimensão dos eventos no mundo árabe, o professor de história da Trinity College, Vijay Prashad , em artigo na Carta Maior, nos oferece com propriedade algumas idéias:
“Essas manifestações só parecem improváveis porque a onda de protestos que irrompeu no fim dos anos 50 e chegou aos 70 foi interrompida no início dos anos 80. Encorajada pela derrubada do monarca no Egito com o golpe liderado por Gamal Abdel Nasser, as pessoas comuns ao redor do mundo árabe queriam suas próprias revoltas. O Iraque e o Líbano seguiram a mesma linha. Na península, o povo queria o que Fred Halliday chamou de “Arábia sem sultões”. Os militantes da Frente de Libertação do Golfo Árabe Ocupado emergiram da batalha de Dhofar (Oman). Queriam levar adiante sua campanha à toda a península. Em Bahrein, o braço mais tímido da batalha foi a Frente Popular. Não durou muito. Com o declínio do Nasserismo nos anos 70, chegou um novo momento para esse republicanismo árabe a partir da Revolução Iraniana de 1979. (...)
Por mais inspiradoras que essas revoltas atuais sejam, elas são parte de um longo processo no mundo Árabe que remonta ao século XIX. Esse longo processo é a Revolução Árabe, cuja luta é por uma transformação total das estruturas de dominação que constrangem o futuro árabe. Um episódio desta longa Revolução Árabe é a revolta de Nasser em 1952. Outro episódio é a onda atual. (...)”
No entendimento de Prashad, o mundo presencia um capitulo a mais da “ longa Revolução Árabe” que põe em evidência duas questões básicas:
- Quando os árabes comandarão a si mesmos, e não serão comandados por ditaduras de partidos únicos e monarcas sustentados por mercados de ações e capital externo? Não há muito tempo a França de Sarkozy e os EUA de Clinton rendiam homenagens aos seus amigos “democráticos” Ben Ali e Mubarak.
- Quando as economias da região árabe serão capazes de sustentar suas populações, antes de engordarem instituições financeiras no mundo Atlântico, e de ofereceram fundos maciços e seguros para ditadores e monarcas? Amaldiçoado pelo petróleo, o mundo árabe tem visto pouca diversificação econômica e quase não consegue usar a riqueza do petróleo para fomentar e equilibrar o desenvolvimento social para o povo.
DOIS FATOS
Um fato é que nesse momento os lideres árabes, de países ricos ou pobres, estão no mesmo barco, com sua legitimidade questionada pela população. E vêem no destino do egipico Barak o mesmo que pode ocorrer com eles.
Seja revolução, seja uma revolta como um capítulo desse processo maior, o povo árabe está questionando sua própria ordem, e com a audiência de um Ocidente que sabe que foi por muitos anos cúmplice das autocracias na região. Estados Unidos e Europa preferiram por décadas a "estabilidade" em lugar da democracia; tudo no pacote de escambo por suprimento de petróleo e por “segurança”. Tradicionalmente o raciocino foi de que se não fosse ditadura, seriam governos islâmicos fundamentalistas, e isso conformaria um risco muito grande.
Outro fato é que há muita gente inocente morrendo. A indignação com a carnificina chegou inclusive a minha amiga Julieta Falavina, mais cidadã do mundo do que eu e doutoranda na prestigiosa London School of Economics com uma pesquisa sobre relações bi-comunais entre Palestina e Israel (perdão se a descrição da temática não está exata, Ju):
Que verdadeiro absurdo o que esta acontecendo na Libia enquanto a ONU, a NATO, e todas as outras ligas ficam "drafting resoluções". Quando eu comecei a ouvir a Al Jazeera ouvi um soldado explicando de Bengazhi, segunda cidade da Libia, que 130 soldados de Benghazi tinham sido mortos pelos soldados de Tripoli por se recusarem a atirar na população
Hoje assisti numa outra cidade a população rasgar o livro verde da Líbia ( uma tipo constituição de onde ontem Gaddafi leu umas ameaças brutais). Entre essas noticias aperecia tbm o Yemem, a Argelia, Bahrain, e o terremoto na Nova Zelandia. Uma ONU ridicula explicava que era feriado nos eua, e depois marcava um encontro para a tarde de terça. Claro ninguem quer se compremeter. Como é que a China ou a Russia vao apoiar protestos. Cada segundo que se passa no entanto nos assistimos de camarote mais alguem sendo morto na Libia.
Da ONU saiu um press release bem bunda. "Condenamos a violência" ou uma coisa ridicula qq como essa. Ouvi uma pessoa dizendo da Libia. Isso nao é suficiente. Nós precisamos de ajuda! Não dá para nao pensar na hipocrisia da Europa preocupada com o oleo e os imigrantes. Nao da para eu nao lembrar de Bush venting sobre ir la para o Iraque exportar democracia. É a chance agora... As pessoas estao la implorando ajuda. Fechem o céu pelo menos!
Julieta também menciona, acertadamente, que o Ocidente parece que terá finalmente que confrontar sua hipocrisia e sua “ladainha de democracia e liberdade já que o povo esta na rua expressando sua liberdade e sendo massacrado por ditadores tanto tempo mantidos ou pelo menos aceitos pela comunidade internacional por décadas”.
É nessa linha que o catedrático muçulmano Tariq Ramadan e o polêmico e genial atual pop star da Filosofia, Slavoj Zizek, não medem palavras em provocar a discussão sobre os acontecimentos ao reafirmarem – se não uma revolução per se – o caráter revolucionário dos eventos no mundo árabe.
No inicio de fevereiro ambos participaram do programa de TV Riz Khan, no canal Aljazeera, disponível na internet AQUI, e foram categóricos: a liberdade é universal.
Para quem quer ter uma reflexão de qualidade sobre o tema, o programa é imperdível. Zizek, com quem eu pude conversar pessoalmente, ainda que brevemente, e acompanhar duas de suas palestras em Londres para uma matéria publicada no jornal Brasil de Fato no ano passado, foi como sempre afiadíssimo:
“O que o Ocidente gostaria é de algumas mudanças que permitissem que situação global permanecesse a mesma.
Na nossa era multicultural somos todos desconfiados dos universalismos, e que a democracia como nós a entendemos é uma coisa especificamente ocidental, que deveríamos entender diferentes culturas.
Mas a realidade dos protestos que estão acontecendo no mundo árabe mostra o quão barato e irrelevante essa conversinha sobre multiculturalismo se torna! Estamos lutando contra um tirano, somos todos universalistas, todos solidários um com o outro. É assim como construímos solidariedade universal. Não através de uma estúpida UNESCO e bla-bla-bla sobre respeito multicultural, mas através da luta por liberdade.
Aqui nos temos uma prova direta de que a liberdade é universal.”
Zizek também aprofunda ao mesmo tempo em que busca despolarizar a questão fazendo um alerta: Se a escolha colocada é entre fundamentalismo islâmico teocrático ou liberalismo ocidental, então a batalha está perdida. “A verdadeira tragédia das nações árabes é o desaparecimento da secularidade das demandas por justiça e liberdade, desse tipo de valores de esquerda. Assim que o crescimento dos fundamentalismos deploráveis no mundo árabe é conseqüência desse vazio deixado pelas esquerdas na região”, opinou.
O povo árabe quer efetivação de seus direitos civis e políticos. Para a região, esses eventos de 2011 podem não ser a inauguração de uma nova história, senão a continuação de uma luta de mais de 100 anos em que, prever que esse será a batalha final, pode ser um exercício arriscado e leviano. De todo modo a velha ordem árabe está sendo sacudida, mas não se pode ainda afirmar que será seu fim.
*Frase atribuída a Mao-Tse-Tung: “Há um grande caos debaixo dos céus – a situação é excelente!”