Thursday, 19 July 2018
A Saint is not an Orixa
O dia 16 de julho é
feriado em Recife porque é dia da celebração de Nossa Senhora do Carmo, a sua
padroeira, acontecimento cultural-religioso com mais de 300 anos de prática.
É dia então de
compartilhar a reflexão abaixo, do Alexandre L'Omi L'Odò, que é a principal
referência do meu texto-foto A SAINT IS NOT AN ORIXA: COSMOPOLITICS, FAITHS
& STRUGGLES IN LATIN AMERICA, um dos capítulos do livro WORDS OF TRANSITION- RITES, CIRCLES, TRIANGLES AND WATER (2017, ISBN 978-9925-7376-0-4).
Daí vamos de Nossa
Senhora do Carmo a Oxum analogamente como vamos de Afrodite a Yemanja (y San
Simón/Maximón/Ri Laj Mam).
Essa publicação (cuja
versão impressa está em circulação e a versão digital ainda não foi liberada
para compartilhamento) é um dos resultados do projeto, de movimento continuo,
do coletivo artístico ‘Re-Aphrodite’, conformado por pesquisadoras e ativistas
do campo das artes no Chipre que, muita gente não sabe, é uma pequena ilha de
grande e antiga complexidade política e cultural (culturas otomanas e
helenísticas tem ali uma milenar conflitividade), independente como país desde
apenas 1960, hoje parte da União Europeia, situada na histórica posição
geográfica entre a Grécia e a Turquia, e em cujas praias nasceu a mitológica
deusa Afrodite.
Pessoalmente, fui
migrante laboral vários anos em Londres e Barcelona, entre 2005 e 2011, mas meu
maior intercâmbio cultural por aquele lado do Atlântico talvez tenha sido mesmo
com as culturas helenísticas, do Chipre e da Grécia, dado a minha história de
relação pessoal construída por lá com Evi Tselika. Desde que voltei ao Brasil,
em 2011, temos realizado várias trocas de projetos em algumas linhas de
preocupação e reflexão comuns na interface da arte e da política.
A ideia desse livro surge
de uma dessas trocas sobre aprendizagem e arte, que de alguma forma fez-se em
conversas sobre Afrodite e Yemanjá (e outras divindades femininas de outras
culturas) e ao mesmo tempo em materializações, em forma de exibição e práticas
artísticas, sobre arte socialmente engajada, particularmente em Nicósia
(capital do Chipre) e Rio de Janeiro.
O foco foi/é a reflexão
sobre transição, em termos de integração, amalgamento, fluxo de sistemas de
crenças e a rearticulação de rituais religiosos através das migrações (historicamente
falando) e sobre o desenvolvimento de práticas ao redor dessas questões em
contextos políticos específicos. Não se trata de uma afirmação ou avaliação do
“multiculturalismo”, mas um esforço de registro de práticas e pensamentos de
práticas vividas, políticas e existenciais.
Seus contornos foram
dados a traves da exploração das trocas de visões sobre altares religiosos e
hábitos cotidianos sociopolíticos em projetos realizados nos Jardins Municipais
da cidade de Nicósia (2016), em uma ampla exposição que o “Re-Aphrodite” teve o
privilégio de realizar no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (Guanabara
Bay: Hidden Lives and Waters Exhibition 2016), e numa cozinha na Shelly
Residence, na cidade de Pafos, também no Chipre (2017).Cremos que elementos de
nossas práticas ritualísticas são refletidas em nossos hábitos de mobilização
política, nossa performance na comunidade, em como somos e nos comportamos em
nosso cotidiano. Cremos que essa publicação serve para reativar nossos próprios
questionamentos transicionais.
Fotos: Aleksander Aguilar
- exemplo de imagens presente na publicação: Aniversario de San Simón, en San
Andres Itzapa, Guatemala, 2017; IX edição do Kipupa Malunguinho, matas do
Catucá, Abreu e Lima, PE-Brasil
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A FÉ NEGRA E O RISCO DO
BRANCO DOMINADOR DE MENTES
“O povo de terreiro,
herdeiros da fé negra e da fé indígena, portanto, a fé da resistência contra o
poder do dominador branco, em ato xenofílico (de agregação religiosa), celebra
o sincretismo histórico de Nossa Senhora do Carmo com o Orixá Oxum, divindade
yorùbá, responsável pela fertilidade da terra, pela força dos rios, pela
beleza, pelo amor e prosperidade.
Devemos lembrar que o
sincretismo afro religioso nos tempos da escravidão servia para que o senhor de
engenho não mandasse matar os negros e negras que estivessem cultuando suas
divindades africanas. Enganando esses seus algozes, colocavam uma imagem de um
santo ou santa em um altar e cantavam em língua africana (que ninguém
entendia), para ludibriá-los. Na realidade, ali estavam prestando culto aos
seus orixás, voduns, inkises, encantados etc. Assim, os padres e os capatazes
não identificavam o que de fato acontecia ali, e até achavam engraçado e
bonito, mas foi isso que nos garantiu a sobrevivência de nossa religião. Hoje
isso não é mais necessário, obviamente.
Este sincretismo a cada
dia vem se enfraquecendo com o fortalecimento dos membros do candomblé (culto
nagô de PE) e da jurema, que em busca de estudos, compreendem que a santa
católica não é o Orixá, e vice e versa, e também entendendo que precisamos fortalecer
nossa identidade religiosa própria, tendo em vista que o universo cristão
historicamente destruiu quase todas as culturas dos negros e dos indígenas,
utilizando-se de um processo violento de proselitismo e catequismo, objetivando
a “salvação” das almas...
É difícil ser negro,
pobre, de comunidade e assumir a fé negra de nossos ancestrais. O mundo ainda é
racista o suficiente para fazer com que a maior parte da população negra se
submeta a fé do dominador. Isso não é nada mais que uma conseqüência
psicológica do quanto violento foi o processo de repressão de nossas fés e
compreensão de mundo. Se achar dentro da religião de terreiro, com toda a
beleza e problemas que ela tem, é um desafio que tem que ser enfrentado por
pessoas que desejam retomar suas raízes e sua verdadeira identidade ancestral.
O direito livre a escolha
religiosa é um direito constitucional garantido. Sendo assim, qualquer pessoa
pode escolher qual religião professar, ou até mesmo não ter nenhuma religião,
ou ter várias. Contudo, esta breve reflexão, serve para tentarmos ampliar nossa
concepção de lugar no mundo. Se nossos ancestrais sofreram o peso dessa
conversão pesada e violenta trazida no bojo do cristianismo europeu, por que
nos submetemos? Será que por termos uma estima muito baixa, preferimos
acreditar no mais óbvio, no que está posto como o Deus cristão? Será que
realmente conseguiram sujar/embranquecer nossas mentes e nos fazermos acreditar
que Tupã, Olorun, Zambi, os Orixás, e os Encantados são demônios e que devem
ser esquecidos? O dominador tem muitas estratégias... Ele tem poder ($) e tem
grandes templos e concessões públicas de televisão ao seu dispor.
Se desconstruir é muito
difícil. Seja em que contexto for. Mas se não nos propusermos a nos superar e
mergulhar na força e energia das tradições de nossos ancestrais, jamais
conseguiremos sentir o quão magnífico é a força de nossas entidades e
divindades. Acordar para o axé e para a ciência da jurema é necessário. Romper
respeitosamente com o sincretismo, muito mais! Temos que ter força e auto
estima de afirmar que Oxum não está ligada a nenhuma santa da Igreja, ou templo
que nos perseguiu historicamente. Oxum mora nos rios, na natureza e nos Ori
(cabeças) de seus discípulos.
Nas comunidades, os
terreiros competem com as igrejas evangélicas de garagem que substituindo o
papel da Igreja Católica, promovem a perseguição à fé negra e indígena,
satanizando e perseguindo os seguidores de terreiro. Esta é uma recapitulação
histórica do que foi no passado o fazer religião cristão. O cristianismo não se
renova, ele entra mais uma vez no ciclo da perseguição e da verdade única, do
Deus único, e da lógica que o mal e o diabo está no outro, e não dentro deles
mesmos, afinal, o diabo é cristão, não fazendo parte da história e nem da fé afro
indígena.
Infelizmente, essas
investidas religiosas de conversão tem dado muito certo... Muita gente de
terreiro, ou negros e negras, por serem fracos ideologicamente e estarem
vulneráveis e sem auto estima suficiente com o axé e a jurema, ou com a consciência
negra, preferem acreditar que foram salvas e que irão para o céu, do que
entender que desonraram seus ancestrais por terem se permitido desacreditar no
bem maior deixado per todos àqueles e àquelas que lutaram para que pudéssemos
estar aqui hoje.
A pobreza e a injustiça
social também são responsáveis pela perda de auto estima na fé negra. As
pessoas preferem acreditar na teologia da prosperidade, de que Deus pode nos
abençoar e nos enriquecer, do que entender que religião é um lugar para o bem
estar espiritual e para o equilíbrio de suas questões pessoais etc. Essa
teologia da prosperidade é uma forte inimiga da fé negra e da luta contra o
racismo. Ela apenas fortalece o capitalismo, que é uma filosofia vigente e
pujante, muito negativa de concepção de mundo.
Ser descendente de negro
e indígena e aceitar a fé do branco, é se tornar branco. Branco não na cor, mas
na compreensão de mundo. Isso ao meu ver é uma das faces mais cruéis da
realidade do negro pobre brasileiro, os negros e negras que viram brancos e
brancas (ver Fanon). Os aperreios da vida os tornam brancos... A falta de
dinheiro, a falta de oportunidades o tornam brancos... Isso é muito triste.
Respeitar a diversidade
de opiniões e de religiões é fundamental. Este meu texto não trata de um desrespeito
contra a opção religiosa dos negros e negras que se tornam evangélicos ou
católicos. Este texto, fiz por entender que é necessário refletirmos mais sobre
estas questões que são vitais para a manutenção das tradições de matrizes
africanas e indígenas no Brasil.
Recife, hoje se veste de
amarelo para homenagear Nossa Senhora do Carmo. Outros se vestem de amarelo
para louvar Oxum... Prefiro louvar Oxum qualquer dia... Sem vinculá-la a
nenhuma santa. Mas respeito quem o faz e até acompanho algumas vezes as
procissões, pois sempre encontro pessoas maravilhosas lá. Afinal, lutar contra
um processo de dominação de mais de 500 anos não é simples e requer muita
paciência e respeito. Temos avançado bastante. As redes sociais tem sido uma
excelente oportunidade de fortalecer nossos debates. Mas ainda temos muito o
que contribuir na discussão e no avanço das compreensões libertadoras de mundo.
Não caiamos na lógica racista. Acordai!
Quando falta pretitude e
consciência negra, o branco entra em nossas mentes e nos convence que estamos
errados nas nossas práticas religiosas afro indígenas. Contra isso temos nossas
raízes negras e indígenas. É só se permitir vivenciar e mergulhar sem
preconceito”
Sunday, 20 May 2018
En el centro
Esta semana que se inicia é pra mim especial e emocional, particular, desafiante. Pela primeira vez desde 2011, regresso ao outro lado do charco, ao Velho Mundo que me fez novíssimo durante os seis anos que lá vivi, quando, no ano que completei um quarto século, me lancei, sem planejamento e sem condições, numa jornada que é pessoal e simultaneamente social, de vários significantes: trotamundos, nomade, ojuara, stranger, Ítaca.
Entre Londres e Barcelona, todos esses, e outras alcunhas mais internas, carregaram-se naquele período da 'viagem que não termina nunca', e hoje estão carregadíssimos de significados, razões e emoções que, apesar de tudo, me anima no momento de 'voltar' onde 'começou'.
Foi numa espécie de movimento clássico, de quem olha da distância pra enxergar o próprio, da vida de migrante laboral áspera e exasperado, que reconheci tanto a enormidade brasileira materna quanto minha "centroamericanidad" paterna, e assim pude rever e viver El Salvador e a América Central ao ter me jogado da capital cosmopolita do mundo colonial na aventura do "universo de incertezas tropicais" que vivo desde então. Dali veio a Catalunya, novamente Londres, meu Pernambuco imortal...,a Costa Rica, todas essas diferenças atadas na mesma linha seeming like an eternal inbetweens life, em que tudo é despedida, tudo é finalmente. Mas logo tem mais. É só mais uma viagem, sempre é só mais uma viagem.
Esta viagem, desta vez, só se realiza e é possível porque é parte de um trabalho coletivo, cheio de dedicação, esforço e afeto, qualificativos que podem até ser clichés, mas que representam elementos concretos e de orgulho dessa jornada à Ítaca em que ainda sigo.
'O Istmo' foi um projeto, é uma realidade e ainda são muitas possiblidades. É com essa rede-plataforma centroamericanista, e graças aos companheiros e companheiras nele vinculadxs, que posso fazer esse ir-voltar, retomar, reconstruir, resignificar, regressar.
Esta é a nossa intensa programação da semana em Barcelona.
Gracias, compas. "Entre el Norte y el Sur está el Centro".
Thursday, 11 January 2018
Tudo o que me lembro de 30 anos atrás
Num dia como hoje, há exatos 30 anos, me acordei na cama da mãe e do pai e caminhei diretamente ao quarto que meu irmão e eu dividíamos, onde havia uma TV daquelas que se tinha que literalmente puxar um botão/pino para liga-las. A ideia era assistir os desenhos do Show da Xuxa, que naquele tempo incluía Thundercats e He-man. O trajeto cruzava a sala, onde minha vó falava ao telefone, daqueles de disco, claro, sentada no braço do sofá. O tal botão/pino da TV estava quebrado, e era difícil puxá-lo sem a ajuda de um adulto. A vó veio até o quarto. Pensei que precisamente para tal tarefa, mas a vi algo chorosa, meio-que secando uma lágrima, e me disse: “- Não, meu filho, hoje não é dia de ver televisão". Claro que lhe perguntei por que, mas ela simplesmente respondeu: “- Volta pro quarto e tenta voltar a dormir”. Obedeci, sem mais questionamento, mas com uma segura desconfiança.
Deitei novamente, com um pensamento latente: “- O pai morreu”, disse a mim mesmo sem produzir som.
O sentido comum, e o clichê, nos chamam a definir a morte como mistério, mas é evidente que uma criança de sete anos dificilmente pensaria nesses termos, embora eu sentia que se tratava de uma ausência, que também chega, e também pesa, e que minha vó certamente chorava porque lhe haviam contado que meu pai havia morrido. Fiquei na cama pensando: “Como será agora na escola?” “O que dirão meus amigos e colegas?” Todos sabiam que meu pai estava doente. Sabiam talvez até mais do que eu. Uma vez uma colega me disse que havia visto minha mãe na TV. Eu disse que não, que minha mãe não trabalhava na TV, mas ela insistiu e me assegurou que lhe tinha visto no telejornal da hora do almoço. Só muitos anos mais tarde é que cheguei a saber que a mãe havia estado em uma campanha de arrecadação de doações para o tratamento da leucemia da qual o pai padeceu por mais de dois anos – tratamento caríssimo, especialmente nos anos 80, quando o transplante de medula óssea era algo novo e arriscado, sobretudo em adultos. Em justiça, como a mãe mesmo costuma enfatizar, sem o apoio material da empresa para a qual ele trabalhava (que custeou boa parte das idas e vindas ao hospital de referência em Curitiba), teria morrido bem antes, pois não tínhamos nem temos meios financeiros.
Não lembro o que houve entre aquela reflexão na cama, intrigado pelo impedimento aos desenhos, e a chegada de uma amiga da família que tinha duas filhas, mais ou menos da idade do meu irmão e da minha, e que haviam sido nossas vizinhas no endereço anterior ao daquela casa na rua Alberto Pasqualini. Ela foi a encarregada de dar-nos a noticia, da qual já sensorialmente sabia. “- O pai de vocês foi morar com o Papai do Céu”, foi que ela mais ou menos nos disse.
De alguma forma eu sabia que depois da noticia ela e minha vó – e talvez também havia mais gente na casa – esperavam muito choro e dor por parte de nós, os pequenos. Mas eu não chorei imediatamente, eu processava a confirmação da informação que já havia percebido, ciente de que era algo muito grave, que me exigia estar triste. Então eu chorei lentamente, solucei. Me levaram até o pátio da casa, onde havia um tanque de lavar roupa, e me limparam o rosto com água. Havia sol naquela manha. É vivida essa lembrança.
Essa amiga então, mãe das nossas ex-vizinhas, pediu que nos arrumáramos para que fossemos passar o dia com elas. A ideia era entreternos, evitar nossa exposição às dores e arranjos logísticos para o traslado do corpo do meu pai de Curitiba até Pelotas, onde ele foi enterrado, tão distante de sua terra natal centro-americana. Ficamos a sós no quarto, meu irmão e eu, juntando alguma roupa e brinquedos. Meu irmão então, com cinco anos de idade, de repente para de mexer na mochila, me olha diretamente com uma expressão confusa e pergunta: “- O pai morreu, mano?” “- Morreu, Vladi, morreu”.
Agora ele chora copiosamente, como se tivesse entendido. Eu o abraço e digo algo que não lembro. O que temos de fazer é terminar de arrumar a mochila porque nos estão esperando.
Da tarde naquela casa, grande, das ex-vizinhas, lembro que todos as brincadeiras que queríamos fazer eram aceitas, todos os jogos, todas as vontades. Elas tinham uma daquelas máquinas de brinquedo de fazer pipoca de verdade, um dos êxitos da Estrela no período, e até esse experimento fizemos. Em algum momento, no sobe-e-desce escadas entre os quartos e a sala, me detive no meio do caminho e expressei em voz alta: “- Será que o meu pai está me olhando agora?” Uma das gurias respondeu, provavelmente que sim, porque eu sentia que ela ia dizer sim, era parte do conforto obrigatório.
Ao final do dia fomos dormir na nossa casa. E creio que estávamos exaustos. Também anos mais tarde minha mãe contou que tentou acordar-nos para o velório – uma decisão que lhe foi difícil pois definir se se deve levar ou não duas crianças pequenas, os dois filhos, a participar do ritual de despedida do pai em um caixão é sempre polemico. A mãe nos contou que o pai não queria que lhe víssemos em tal circunstancia – seu corpo vazio preenchendo o espaço de uma caixa; não queria que tivéssemos essa memória. De fato não a temos. Tentaram despertar-nos, conta a mãe, logo da controversa decisão, mas aparentemente estávamos demasiadamente sonolentos, e isso foi tomado como o sinal para não insistir em levar-nos ao velório.
Hoje são 30 anos depois daquele dia. Eu hoje não lembro da voz do meu pai, não lembro se tinha sotaque português espanholizado como dizem que tinha. Não lembro de suas manias e teimosias como dizem que tinha, nem do gênio forte que dizem que tinha. Lembro que lhe tínhamos muito respeito, algo de medo. Uma vez ele disse que jogaria nossos brinquedos pela janela se não arrumássemos a bagunça do quarto por onde estavam espalhados, e assim o fez! Mas era uma casa, não um edifício, então era coisa de apenas ir ao outro lado da parede junta-los da rua, mas ainda assim. Logo disso, sempre que ouvíamos o barulho do motor do fusca que ele dirigia, que reconhecíamos a uma quadra de distancia, corríamos para arrumar o quarto.
Hoje, 30 anos depois daquele dia, com quase a idade que ele tinha quando morreu eu escrevo do que lembro desde Manágua, da capital revolucionaria do país vizinho a nossa terra El Salvador, que inspirou toda uma geração de centro-americanos em lutas emancipatorias. “Si Nicaragua venció, El Salvador vencerá!”, dizia um dos slogans da guerrilha, da qual meu pai havia participado ainda antes que se desatara oficialmente a guerra civil no país que durou até 1992. E hoje há tanta decepção na Nicarágua 'neo-sandinista'... Toda Centroamerica fervia nos anos 80, quase que literalmente, e quase toda minha família paterna em função disso è hoje parte das estatísticas da diáspora salvadorenha pelo mundo.
Meu pai morreu antes do fim da guerra salvadorenha, antes do assassinato dos jesuítas da UCA, antes do fim da Guerra Fria, antes da queda do Muro de Berlim, antes da nova ordem mundial… Meu pai morreu quando em Nicarágua ainda se resistia em contra da “Contra”, quando ainda não havia decepção, senão esperança.
No extremo sul do Brasil, contudo, ele não tinha esperança contra a batalha pessoal contra aquele câncer que lhe consumiu lentamente. E ainda assim – isso também só aprendi anos mais tarde – minha mãe não retrocedeu nem um centímetro, nem durante nem depois. Acalmou, amenizou, confortou e sustentou todas as dores que ele sentia ao chegar em casa, calvo e exausto, das longas sessões de quimioterapia em Curitiba, que nos impediam até mesmo de sentar na cama junto a ele, pois seu corpo estava decompondo-se.
O natal de 1987, seu último evento social, foi uma reunião naquela mesma casa da ampla família materna, naquela época, cheio de crianças, irmãos, tios e primos, e eu o encontrei em um determinado momento, quando todos os demais estavam trocando presentes e rindo alto na sala, sozinho sentado numa cadeira de praia no pátio. Parece que sabia que aquilo se acabava, e estava fumando, a pesar de que há muito já não podia fumar, e efetivamente havia parado. Talvez por isso mesmo se permitia um último sabor do vicio, um ultimo momento de solidão consciente, uma despedida de si mesmo. Eu lhe perguntei por que ele não vinha pra sala com a gente, ele me abraçou e disse que já iria. Fiquei no marco da porta esperando-o, vendo-o de costas, sentado olhando para a escuridão. Ele se levantou, apagou o cigarro, e entrou.
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