Thursday, 7 July 2016

De uma noite de outono pelotense em 2016

Estou passando um frio incrível na cidade de Pelotas.

Incrível não apenas porque quase não consigo acreditar que nasci e me criei nele, nisto que minha atual percepção de clima facilmente classificaria de absurdo gélido, mas também porque há um quê de extraordinário neste inverno recém chegado, em particular, pois vejo os pelotenses reclamando do quão cedo e intenso o frio chegou neste ano.

Websites de previsão do tempo afirmam que a temperatura por aqui nesta madrugada é de 4c, com sensação térmica de -4c. “London feelings”, uma amiga carioca que conheci em Londres reage a um post meu mostrando a temperatura do momento em Pelotas.

Incrível ainda porque, tomando como base o que parece ser minha atual relação com este tipo de frio, chego a falar em pelotenses em terceira pessoa. “Mas criado aqui e tanto tempo em Londres, para de frescura, tchê”, já me disseram.

E por isso, e outras razões, fui procurar no meu blog o que já havia escrito sobre frio, enquanto morava naquela ilha quase polar, e vou confirmando o quanto minha relação com o gelado já foi outra, de fato. Note-se que disse “gelado”. Porque buscando esses comentários climático-existencialistas anteriores, percebi que o meu frio costumeiramente sempre foi o gelo, e me dei conta que hoje aprendi que o frio pode sim ser apenas frio.

Mas não aqui em “Satolep”.

Por exemplo, em dezembro de 2010, sendo natural destes pampas e com alguns anos em Londres, escrevi: “O parâmetro de frio para mim é quando me vejo obrigado a usar luvas. Não sou muito fã de luvas, mas há um momento em que é fisicamente impossível andar na rua com as mãos expostas, quando os dedos realmente doem de gelado e ás vezes chega a parecer que vão congelar mesmo. ”
Hoje, entretanto, aqui nesta minha cidade natal, estou usando luvas desde primeiro dia que cheguei, e agora mesmo enquanto escrevo sinto meus dedos tesos pela falta delas. Alterno o digitar no teclado com breves aquecidas das mãos no ventinho quente embaixo do laptop, e isso estando na cama debaixo de camadas de cobertores e edredom, e com cachecol ao pescoço. O manual de sobrevivência instintiva pelotense recomenda sentar por um tempinho em cima das roupas recém tiradas do guarda-roupa e que serão vestidas, caso contrário é quase como esfregar uma barra de gelo nas costas, barriga e pernas. Faço interjeições de espanto e indignação cotidianas com o sentir literalmente na pele a falta de estrutura para o frio de uma região brasileira que urbanisticamente, na configuração interna das casas, esquece que não é tropico. Pelo menos para nós, os sem-dinheiro, que não temos lareira, nem fogão a lenha, nem climatizador, e neste momento (porque quebrou) nem uma estufa pequena para deixar um bafinho quente no banheiro por alguns minutos antes de enfrentar o chuveiro, elétrico, que simplesmente quase não dá conta de aquecer a agua quase em ponto de congelamento nas tubulações. E porque tem que se deixar o registro o mais fechado possível, para que a agua, caindo em menor quantidade, possa ficar mais quente, as vezes sinto um cheiro de queimado vindo da ducha e me preocupo que o bendito queime a resistência em meio a uma ducha. O banho diário, nessas condições, é um momento que exige concentração, preparação e desprendimento - uma prova de coragem, especialmente se for cedo pela manhã. A agua direto das torneiras sem aquecedor, senhoras e senhores, é de uma temperatura anestesiante, e é com ela que temos que lavar a louça nossa do dia-a-dia... Absurdo gélido.

Encontrei ainda nestes posts climático-existencialistas no meu blog comentários sobre como o frio em Londres “é daqueles bem úmidos, com bastante vento, que sopra gelado pelos poros até a alma, coisa de “ranguear cusco”. Lendo isso hoje, e sentindo todo o gélido diário que estou sentindo, sempre que possível tentando estar sob aquele raiozito de sol que esteve persistentemente ali por mais de meia hora só pra dar a entender que ele não fica presente por muito mais tempo mesmo, me pergunto, atualmente, e aqui é muito diferente?

Foi preciso eu entender outros Brasis, que no meu caso só foi possível conhecer tendo ido pro exterior antes, pra aceitar que parece que há mesmo semelhanças entre Londres e Pelotas nesse quesito. Não que isso seja novidade. Ao menos não o é para um certo pelotense modus vivendis que, ao fim e ao cabo, adora comparar a umidade desse pântano do Sul com a Londoner, adora associar a “murrinha” desse inverno pampeano com o tal do fog...

O fato é que  “ O frio geometriza as coisas”, como disse um personagem de Vitor Ramil, no livro “Satolep”. Talvez porque ele possa permitir, ou nos fazer crer, que a partir dele as coisas se encaixam; talvez porque encaixar-se, por conta de frio, é também embrutecer-se. Eu não quero deixar embrutecer-me:
"Mas também é bom sentir a densidade,
o cair grave em forma de azul-escuro, pesando sobre a estratosfera,
reverberando,
sentando-se em espirais,
lentas.
Ouvir timbres marinhos em mínimas solfejadas por bocas grossas,
acompanhadas pelo estalejar daquelas esquecidas pela varredura.
E tocar o vidro gélido,
sujo,
penetrar o fleumático desses tons homogêneos, de consistência escura,
cheirar emanações esbafejantes das alvoradas soturnas, nebulosas,
respingantes, menos que chuva.
Sons baixos sussurrados no vapor negativo, arfantes entre as espessuras invisíveis,
o toque de se encolher."