Friday, 19 April 2013

Fazendo a cachola trabalhar, de derivações pra outros fins, extrai:


ENTRE PERNAMBUCO E RIO GRANDE DO SUL – CONSIDERAÇÕES SOBRE O “MULTICULTURAL” QUE NÃO SE CONHECE

Uma das características mais celebradas do Brasil que se orgulha de ter em si mesmo tantos Brasis, no limiar de ser estereotipada, é “a imensa diversidade multicultural da nação”. É já quase uma marca em sim mesma, um rótulo, a linha-mestra de um discurso cada vez mais introjetado e repetido para definir o país de uma forma que soe ampla e conectada, da qual muitos governos se servem fartamente, ainda que nem sempre esteja acompanhado da reflexão, e da ação, que o legitime.

Apontar o Brasil assim, celebrando seus universos multiculturais, busca abranger um todo que, paradoxalmente, ainda define pouco. Em entrevista recente a um website brasileiro de notícias, o professor pernambucano de sociologia Fábio Medeiros, falando sobre a pluralidade cultural de Recife, afirma que um dos méritos do multiculturalismo é provocar a interação e gerar a tolerância e o respeito na sociedade.

Como discurso, a importância da expansão do reconhecimento do viés multidentitário brasileiro é fundamental para a consolidação de um projeto de país que se veja, se questione, se respeite. As políticas federais brasileiras nos últimos anos, de fato, tem buscado promover a percepção da multiculturalidade através da afirmação do “local” em relação e com conexão ao “global”.  O estabelecimento de ações como os Pontos de Cultura, valorizando experiências dos mais inusitados recônditos do país e que neste momento está em plena execução, permitiu a potencialização de iniciativas culturais existentes através de redes orgânicas de gestão.

 Mas se hoje somos capazes de começar a perceber os brasis dentro desse universo, não entendemos, por outro lado, sua emergência e sua condição. Prevalece entre os extremos de um país de dimensão continental a observação de sua simples existência e não-raro a isso limita-se e, portanto, se faz  tão exótica do norte para o sul quanto vice-versa.

As pontes entre esses brasis ainda são escassas. O uso da expressão “diversidade multicultural brasileira” parece apresentar-se como um conceito suficiente para muitos e, assim, ignora-se que essa condição deveria servir como provocação para que essa pluralidade de brasis se conheça. Algo que pode se dar a partir de conexões de redes de ativistas e grupos culturais, sim, mas também de política pública formulada e com recurso e estrutura alocada para que o paradigma também seja o das trocas local-local. Hoje, ao mesmo tempo que começamos a nos ver multicultural, não enxergamos os significados e as possibilidades disso.

Quem percebe a importância de, concomitantemente ao discurso, avançar também em iniciativas que efetivamente façam tais conexões? Por que falar em cultura negra do Rio Grande do Sul é vista com olhos de surpresa pela a maioria do cidadão médio pernambucano? O que é o sopapo em Pernambuco? O que é a alfaia no Rio Grande do Sul? As culturas locais são entendidas como nacionais? As singularidades de um país de diversidade cultural devem ser tão particulares ao ponto de gerar em um gaúcho tanto estranhamento ao ritmo e a dança do coco quanto um pernambucano à música nativista? O que é meu como Brasil-local não pode também ser compartilhado e entendido pelo Brasil-nacional?

 Há muito esforço para o reconhecimento e valorização do local e pouca reflexão e ação sobre o que fazer com isso. Entender a si mesmo é entender sua posição em relação ao outro. Hoje, o outro, no mesmo solo nacional, é distante.

No Rio Grande do Sul faz frio, em Pernambuco faz calor. O Brasil que se projeta globalmente limita, entre seus próprios nacionais, sua noção de si mesmo tanto quanto o faria um estrangeiro; que tem o álibi de ser, justamente, um estrangeiro. Entender-se brasileiro não é só entender o Brasil-local, senão imprescindivelmente este local e sua interação, coincidências e diferenças com o Brasil-nacional. Analogamente, trata-se de uma espécie de reprodução em escala nacional interna da posição do país ao continente, pois somos da América Latina, mas grosso modo na consciência identitária brasileira latinos são os outros. Para que os locais assumam sua condição de global não basta apenas valorizar-me pernambucano ou gaúcho e ESTAR, desse modo, brasileiro. É necessário o SER brasileiro, apoiado no espaço local, mas projetado num fim de compreensão integral que só pode se realizar através da experiência concreta, estendendo-se pontes, promovendo trocas e entendimentos das relações de poder e socioculturais.

Se o trinômio sol-samba-futebol ainda é o que povoa o imaginário da percepção cultural-identitária estrangeira sobre o Brasil, qual seria a equação pela qual o próprio país se entende? Ou essa conforma um clichê do qual muitas vezes o próprio país não quer se afastar? Como se procuram, se trocam e se relacionam, por exemplo, o rural, o sertanejo, o bucólico, os pampas e o litoral? Assim como o Brasil de fronteira se caracteriza em sua realidade, (por exemplo, o Brasil sulista com os povos castelhanos do Rio Del Plata) quais são as intersecções e intercâmbios que o Brasil faz ou quer fazer consigo mesmo?

Pensar o mundo não é uma abstração, e deve iniciar-se pela compreensão da pertença a uma unidade nacional, isto é, um todo que se estabelece pela interação das partes; abrir-se para o mundo e dialogar com o global começa trazer o Brasil para cada parte que o compõem e tornar-se cada vez mais parte dele.

Há a necessidade urgente de explicitar o espírito do Brasil através do engajamento em um processo de conhecimento mutuo dos diferentes espíritos dos vários “brasis” – que coexistem no mesmo corpo territorial – e que a partir de permanentes sessões de sincretismo cultural fazem dessas partes um todo consolidado.