Thursday, 24 September 2015

A idade do meio – ou Old horse with young heart flies across the sky (3)

“Não, não. Entenda. Dessa faixa dos 20-e-poucos tens que sair correndo!”. E eu não entendi. Sorri, mas não entendi. Hoje imagino que o ex-guerrilheiro salvadorenho me falava justamente da idade do meio, da idade do medo, “la edad aquella en que la certeza caduca”. Intertextualidades talvez seja uma marca, e por isso vou me permitir enormes excentricidades hoje. E porque não há certezas, é público.

Em um conceito simples: estamos entre 15 e 15. No meio, entre dois vértices cronológicos, diametralmente distantes de duas representações sociais, via de regra, inconciliáveis; convencionados e tipificados de acordo à narrativa mainstream que exige, que é naturalizada e, em sentidos opostos, igualmente nos demanda. Perplexo ou assombro – para um lado o jogo aberto, permitido, licenciado, perdoado; para o outro o caso dado como encerrado, estereotipado, julgado, cobrado. O mesmo período de tempo, precisamente aos 35, nos separa de dois forçadamente alheios “eu´s e minhas circunstâncias”. É o meio e o medo que o pendor conforma. Numa ponta dessa sincronia/diacronia, aos 50, apenas deves saber. Na outra, aos 20, saber é uma petulância. Mas estar ao meio é um fim.

Muitos de nós, dessa esquizofrênica última geração que fez o Segundo Grau sem Google (que se demarca só por ser “segundo grau”), aqui estamos, nessa faixa, ou precisamente neste ponto, ou inclusive mais além dele. Nem todos dão reflexão. Já eu, um fascinado pelo tempo, um admirador respeitoso e intrigado, apesar de ignorante, por essa dimensão todo-poderosa da existência, insisto em não abandonar a crítica e, como um bom espectador de mim mesmo, agarro-a com força tentando extrair tudo o que me dá, ou pode me dar, esse senhor Cronos (e/ou Kairos). Mas também o vejo passar desgringolada e abusadamente, fazendo escárnio da nossa estupefação e nossa pequenez, e só por vezes logro responde-lo com o mesmo dar de ombros.

Estou ao meio, e este é um fim. Dessa idade do meio/medo sobre a qual pensava em escrever desde o último aniversário, como o fiz ao cumprir os famosos 30 anos, deixei para tratar agora quando o período coincide com os dez anos à Ítaca, justamente neste setembro. Naquele mês de 2005 teve início esse período singular pra mim, nunca acabado, e que reverbera com insistência em um troço de chumbo derretido que se solidificou em forma de uma pena associado a uma mensagem: “change is your home”.

A capital britânica, um “monstro de escuridão e rutilância” próprio, é uma espécie de marco zero, depois da cidade natal, aquela “mais úmida do mundo depois de Londres”. De uma maneira estrambolicamente pessoal, de fato elas encontram alguma coincidência. Essas suas umidades, tão polissêmicas, as converteram em pontos equidistantes em uma jornada de cartografia contínua. Nesses dez anos, por sorte, torpeza, teimosia e aflição, obtive a possibilidade de viver em cinco países distintos, possível a partir daquela babilônia cosmopolita de milhares de sotaques e de encontros determinantes aos quais sou em um-sem-palavras agradecido. Àquela cidade-força somaram-se Recife, San Salvador, Barcelona, Heredia. Privilégio e amargura, caminho de eternas despedidas, ausências materiais e pessoais e sensação, simultânea, de tempo mal aproveitado e extraordinariamente utilizado. Definitivamente são lindos os paradoxos. A minha rota até Itaca é prolongada, tola e temerosa, tal qual imagino que foi o sonho de Kavafis.

É análoga à queda-livre. Já me atirei de um avião para descobrir que soluções não caem de paraquedas e, coincidentemente ou não, por exatos 35 segundos estive em total queda-livre, o que para mim foi como se apenas cinco tivessem passado. E era o final de um ano que foram cinco, como sempre deveriam ser, como um dia desejei que sempre fossem. A lona aberta que veio à sequência foi uma brincadeira, foi como estar numa roda-gigante em escassos minutos de recomposição, olhando a paisagem, desejando que assim que pousasse fosse possível subir de novo, como uma criança que desce pelo escorregador e corre para deslizar novamente.  O que não aprendi a esta idade foi o conselho de uma coisa de cada vez, mas ainda o tenho como um objetivo. Entendi, contudo, e desarmado, o clichê do presente, do não-futuro. E aceito.

Aceito, não sem essa melancolia que para mim é tão obrigatória quanto frequentemente desdenhada e rotulada, que estamos sós. Lamento as ausências, mas entendo que somos resultado delas. Tantos e tantas que nunca nos ocorreria que poderiam meramente ir-se, foram-se. Não porque morreram. Que se foda a morte! Falo dos que se ausentaram por vontade – ou circunstância, diriam – própria. Não importa se são falsos, patéticos, ingênuos ou de má-fé. Dá igual. Falam tanto em amor, arrogam-se exerce-lo, senti-lo, e não verdade são ratos de laboratórios. E que não se confunda ratos com camundongos. Quem dera fossem como os camundongos de Dostoievsky... São reféns de mediocridades assumidas, para os sagazes; e não percebidas, para os estúpidos, e de todo modo reféns, banalizados em nome de um suposto status quo. Não há paz, há trégua, egoístas.  

Recupero textos que escrevi nessa jornada e faço retentivas e adaptações “Y quién soy yo a final? Un periodista, un romancista, un anarquista?” escrevia em espanhol, sob o encanto da primeira visita ao país paterno, El Salvador, buscando sentido para a distância de casa, as horas de solidão, a autoimposição de disciplina, as inumeráveis facetas de mundos em descoberta de um despreparado adolescente que se aventurava a viver só na capital pra prestar vestibular. Tudo em mim era esperança – com uma incerteza e segurança em mim mesmo, simultaneamente; lindo paradoxo novamente. Misto de pragmatismo e utopia, fé honesta e ceticismo inquisidor, e música, sempre muita música. Uma eclética e sem-fim trilha sonora durante todo o caminho com cada cena encontrando seu som correspondente. E o eterno horizonte do ir, “hay que irse, salir, abrir y ver, hay tanto para ver”.

Eu hoje sou estúpido o suficiente para acreditar não ter sonhos, mas tinha esperanças. Há pouco tempo, contudo, uma amiga me entrevistou para um projeto audiovisual e não soube responder sobre esperanças, senão sobre o sonho, idílico, que é o voar, além de o de um metabolismo naturalmente mais lento que nos permitisse chegar aos 80 com corpo de 30. Continuo, instável, continuo buscando não-sei-o-que. Não vejo horizonte de terra firme, nem oásis. Naquele cruzamento em algum espaço-tempo entre a primavera e o outono, minhas realidades e passados, tão entremesclados como tais, se visitam sob o mesmo gris, vento, e persistente chuviscar que abaixo da Linha do Equador limpa os céus para a chegada do calor, mas no Hemisfério Norte anuncia o clássico contrassenso do começo do fim. Algo começa por lá. Algo termina aqui. Ou mais bem o contrário, eu já não sei.

Hoje, aliás, me é muito mais fácil e difícil ao mesmo tempo afirmar que não sei. Hoje o que mais me impressiona é o realizar que tudo permanece em poderosa tensão, tudo ainda brilha, transpira, fede, reclama, suspira e se joga, mas, honestamente, não com o mesmo pulso de vida como quando voltava do fim de semana em Pelotas para o “autoexílio” em Porto Alegre, carregando o afeto familiar expresso em biscoitos de aveia feitos pela minha mãe junto a uma alma constantemente inquieta.

Aquela inquietude era apenas criativa, hoje também é perturbada. Antes era apenas aquela que me faz entender a obsessão por filmar a própria sombra pelo Barrio Grácia, buscar placas de aviso entre Hackney e Islington, fotografar tags nas ruas de Atenas, de Recife, de Barcelona; colar adesivos sobre rios suecos congelados em Södermalm, desafiar a ressaca numa subida de um morro no sul da França, atirar-me de rochas ao mar do Chipre em Cavo Greco, torcer para que não acabem as horas em Chaputelpec, chegar até El Mozote na traseira de um caminhão. Hoje, “se ha roto el encanto, las burbujas se van reventando, hay cosas que duelen tanto, prefiero desangrarme en armonías de llanto y organizo mi rabia en métricas de espanto”.

Não trato o corriqueiro de um lugar como exótico e surpreendente só porque não é o "meu" corriqueiro. Nunca busquei, tampouco, a forçação de barra da integração, tentando fazer do estranhamento algo usual, artificializando-o por conta do desejo e/ou necessidade da adaptação. Tampouco porém estabeleci relações alienígenas, daquelas que não apenas apontam todas as supostas diferenças como também correm atrás delas por conta também do desejo e/ou necessidade de demarcar-se, buscar pertença. Um viajante não busca marcar diferenças - como o colecionador de curiosidades de antigamente para serem exibidas num circo de excentricidades. Busca antes encontrar as semelhanças na diversidade, busca a articulação no conflito. Em considerável medida sem querer, a palavra de ordem tornou-se desestabilizar. E a dinâmica de existência que resulta dessa instabilidade é angustiante e perturbada. 

Essas adaptações parecem, porém, novamente cada vez mais fáceis e mais difíceis ao mesmo tempo. A esta altura o sentir que ainda não se aprendeu nada é sólido, e "tudo que é sólido desmancha no ar". Abro mão de certezas em nome da suposta sabedoria para constatar. Se sou firme, confiante e opinativo, sou arrogante, autoritário e pretensioso; se sou inconstante, modesto, e ouço-mais-do-que-falo, sou hesitante, fraco, inconfiável. E por isso lembro-me, ou vou cada vez mais tentando aceitar, não sem indignação, um outro lugar. Este lugar de dualidades em que vige coragem x irresponsabilidade / humildade x insegurança. “Seja marginal, seja herói”.

Cenas e personagens aleatórios assim inusitadamente permanecerão nessa memória, tão abarrotada, e se misturam com outros indispensáveis e determinantes. Eu sempre quis viver realidades e não-sonhos e agora pago o tal preço. Eu já quis descarregar. Deixar de acumular, de absorver. Os olhos estão cheios, a mente está lotada, é tanto vermelho, tantas folhas, tanta inundação. Eu já fugi do sol com nostalgia pela neve, e voltei e gritei por ele, para depois me pegar saudando com uma respirada funda cada um dos escassos dias nublados encontrados. Agora livre porque vivo fugindo, numa viagem que não acaba nunca, esse meu escudo, calado, é tudo que sempre quero, é minha própria anátema.

Na nostalgia das pequenas convivências, na exotização do que está longe, no meio dessa opressora ordinarização de tudo, seeming like an eternal inbetweens life, entre idiomas, não-lugares e meios/medos, sigo fazendo questão de cisões e maldizendo-as. Não são apenas identidades cindidas, são também as identificações. Tudo é sempre só agora, tudo é despedida, tudo é finalmente. Mas é mentira, logo tem mais. Tento enganar a mim mesmo porque ninguém mais por mim cairia. Não há paz, há trégua.

Mas você não dá a mínima, ou sorri com o sorrisinho cretino dos pretensiosos, simplórios e rotuladores. Eu te mostro o dedo médio e dou boas-vindas a mim mesmo ao clube dos eternos insatisfeitos e inconformados, cuja filiação, apesar de emitir uma carteirinha atraente e brilhantes ás vezes é mais maldição do que benção. Eu sei que não participo solitário desse círculo marcado pelo paradoxo, mas estamos demasiadamente espalhados e nossas reuniões são muito eventuais. Por isso valorizamos tanto o encontro – e cada vez mais os reencontros em particular – e fazemos dele o bálsamo que cura a ferida dos constantes adeuses.

Não deixo nunca de pensar no lugar, nem nas ideias, nem nas ideias fora de lugar. Nem sempre sei aonde vou, mas costume saber onde estou. This eternal contradiction between the love and hatred I feel for this feeling of estrangement that always prevent me from really staying where I am, while at the same time makes me tired to be always going”. Nem tudo foi planejado, mas sempre tentei não desperdiçar nenhuma oportunidade – ou pelo menos nada daquilo que eu julguei ser como tal. Hoje das minhas várias referências, não sei realmente qual possuo. O lar, a estrada, o não-estar, o estar demasiado, a impermanência, o querer, o dever, a escolha, o legado, o sentido; todos estão relacionados, todos convergem, todos reclamam, todos se perdem, no tempo, e talvez no espaço, aquelas duas dimensões que alguns julgam inexistir, mesmo que nos venham como paredes contrapostas esmagando-nos, e onde “sobre a frágil base da realidade, a imaginação tece sua teia e desenha novas formas, novos destinos”.

Uma das coisas que imagino me quis dizer aquele salvadorenho é que entre tantos traços bons da juventude um ruim é afirmar-se sobre terrenos que se creem fixos e estáveis, tomando assunções aprioristicamente, crendo no que se reveste de irrefutabilidade – de novo um paradoxo - porque daí tem-se a própria necessidade de construção identitária, que lhe permite dizer o que "sou" e o que "não sou,", tendo como consequência a exigência de uma "solução", ou "resposta" - como se estas existissem num horizonte a se chegar, e basta trabalhar para alcança-las. Assume-se que um tipo de conhecimento é legitimo porque está dado pelo paradigma falseabilidade/comprovação que fazemos questão de entender como superior, e as consequências são graves, das mais socioestruturais às mais intimas. As mais intimas.

 “Es bueno abrir su corazón, es bueno pensar y preguntar pero si nunca sabes contestarte quizás es mejor hacerte otras preguntas”. Despedir-se faz com que tudo seja mais intenso. Sonhar e/ou fugir faz com que vida não alcance uma rima com tranquila. Em um tempo chegará a nostalgia e talvez a sua prima desgraçada, a insatisfação, ambas nos empurrando e empurrando a um beco sem saída. E ali em uma parede, embaixo de onde se lê “la beleza es tu cabeza” escreveremos para acrescentar com nossa cerveja, nosso sangue ou nossa merda: e que mal havia em não fugir?

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