Tuesday, 21 October 2014
Desse vermelho
Se queres
vista-a, calce-a, enrola-te em bandeira,
faça fotos,
poses e publique-as na rede com essa cor que pretendes,
cobre-te o
calvo pelas conveniências que te esgueiras.
Mas não te
atrevas a dizer que a conheces.
Porque é
sangue, poeira da terra, queimadura do sol, queimadura de gelo, vergonha, digna
raiva.
É tudo o que
ouvistes contar, e não entendes.
É triste hoje te ver pela rua
com essa
estrela que em ti não brilha, decora; essa cor que em ti é fantasia, revolta.
Fiques certo:
essa cor que vestes, assim, é quase escárnio.
Essa cor que
vestes não é tua.
Primeira coisa: “Voto na Dilma é veto
contra o Aécio”, parafraseando o deputado federal Marcelo Freixo (Psol). Um
mote que deve ser levado muito a sério na atual conjuntura, mas sem descuidar
da reflexão cuidadosa que se exige sobre esta eleição 2014 no Brasil – a mais disputada
e interessante dos últimos anos, de forma a amenizar os perigos do maniqueísmo
construído na narrativa desse pleito e a falta de juízo crítico diante das estripulias,
digamos assim, do Partido dos Trabalhadores (PT).
“Tá serto”, PT. Votaremos em vocês
outra vez, mas entenda este voto-veto como um marco, definitivo, porque também
é preciso humildade para o reconhecimento e autocrítica para a ação. A esquerda
do país, mesmo a de discernimento e principalmente a deslumbrada, fisiológica
ou acrítica, considera que o senador Aécio Neves (PSDB) na condução do Estado hoje
representaria um dos maiores retrocessos da história da república brasileira, e
por isso, pese a existência e o fundamento da campanha pelo voto nulo, há uma
aliança tácita entre alguns, e barulhenta entre muitos, para apoiar mais um
mandato petista, em que se cria uma atmosfera de terror maniqueísta,
supostamente justificada, novamente, pela urgência eleitoral, que tergiversa nossa conjuntura.
No entanto, a realidade deve ser, inadiavelmente, pontuada de forma assertiva e
clara.
Felizmente entre os críticos esse
apoio não se dá sem polêmicas ou desconfianças, algo que se entende observando
três grandes traços do pleito e da dinâmica política do país que se arrasta há
anos sobre os quais podemos apontar:
1- O crescimento da direita e da bancada
ruralista no congresso nacional no primeiro turno – a chamada Frente
Parlamentar da Agroindústria, como aponta o professor Nildo Ourique, da UFSC, tem hoje 257 deputados e senadores, metade do
parlamento, e está comprometida com as estruturas atrasadas da propriedade da
terra e do latifúndio. Um quadro conservador que fez relevo e expressa os
extraordinários benefícios que esse setor obteve nos governos petistas,
notoriamente amarrado a suas contradições. Ao ponto de uma das principais
lideranças desse grupo, a senadora Katia Abreu (PMDB), figura notória da
direita do país, ter declarado apoio a Dilma, além, claro, do apoio de outros
personagens esdrúxulos da política brasileira, como Fernando Collor,
ex-presidente por impeachment, que nunca deveria ter saído do ostracismo, mas
que o PT acolhe sob a empáfia retórica do aclamado pragmatismo político.
2- O discurso entre o bem e o mal – o
maniqueísmo com que foi construída a narrativa do processo eleitoral,
supostamente representado, respectivamente, pelo PT e pelo PSDB, que ignora,
convenientemente, as bizarras contradições políticas, principalmente petistas,
e a difusão ideológica que caracteriza os partidos políticos brasileiros
atualmente, encarcerados, com gosto ou não, pela pressão da governabilidade.
Essa é uma reflexão fundamental para evitar o voto acrítico em Dilma,
impulsionado pela retórica dos militantes, ou dependentes, do partido que
propositalmente deixam de lembrar que o atual modelo não consegue fugir da
equação que associa qualidade de vida e crescimento econômico segundo a lógica
do capital.
3- Os atuais desafios do PT e da
esquerda – ganhando ou perdendo estas eleições, o PT terá que se reavaliar.
Durante vários anos os governos do PT tiveram índices elevados de popularidade,
e houve acomodação do partido. Depois das “jornadas de junho de 2013”, o quadro
se alterou, deixando várias perguntas em aberto e tensão no debate eleitoral.
Se ganhar, o partido será pressionado a não mais se contentar com sua ortodoxia
econômica com alguma preocupação social, e deverá avaliar seus compromissos com
a classe trabalhadora, deverá se esforçar mais para sair do modelo de
capitalismo de mercado. Se perder, haverá uma interessante e pesada avaliação
do seu papel, e erros, na experiência democrática brasileira com importante
repercussões na reorganização das forças políticas de esquerda do país.
OS PROJETOS EM DISPUTA - Mesmo considerando essas generalizações, pode-se ainda
afirmar que há, guardadas suas grandes e inegáveis semelhanças, dois projetos
brasileiros em disputa: um social-desenvolvementista, baseado em alguma
preocupação com inclusão social e distribuição de renda; e outro neoliberal,
baseado em ajuste fiscal, redução do papel do Estado e radicalização do tripé
macroeconômico liberal (meta de inflação, superávit fiscal e câmbio flutuante).
O primeiro projeto é incompatível em
larga medida com o modelo macroeconômico exercido pelo PT, que é,
essencialmente, o mesmo desde o governo Fernando Henrique Cardoso. De modo que
o PT, aferrado a sua tese de gradualismo, usa, em uma forma especifica, o mesmo slogan de governos autoritários do
passado do Brasil de “ transformação lenta e gradual”, agora, porém, em lugar
do objetivo de democratizar as instituições nacionais sem afetar a ordem nem
apontar culpados, busca avançar em políticas públicas que favoreçam os mais
pobres, mas mantendo e ampliando o poder do capital.
O Partido dos Trabalhadores em 12
anos de governo sequer tentou mudar os marcos institucionais e constitucionais
dos governos neoliberais que o antecederam – a exemplo do que fizeram outras
nações latino-americanas com governos progressistas – e se contentou em fazer o
que chama de “governo do possível”. Mesmo com a retórica progressista, o PT
nunca prescindiu do capital transnacional que lhe dá suporte e acesso a
mercados, e em troca o Estado facilita créditos e recursos a grandes empresas
em detrimento de investimento social, algo que Frei Betto chamou de “processo exportador-extorsivo”.
Esses recursos são de ordem energética, agrária e financeira e caracteriza a
contradição desse modelo neodesenvolvementista que, ao fim e ao cabo, anula as
diferenças estruturais entre esquerda e direita, fazendo com que o chamado processo
pós-neoliberal, em tese em curso, aceite a hegemonia capitalista.
Mas o segundo projeto, representado
por Neves, é ainda pior, porque a economia funcionará atendendo ainda mais os
interesses do capitalismo financeiro, diminuindo, por exemplo, o papel dos
bancos públicos no funcionamento da infraestrutura social em favor de bancos
privados. O condicionamento fiscal que se dará para atender promessas de
redução da meta de inflação restringirá o gasto público em políticas sociais,
gerando desemprego e recessão, aumentando as desigualdades. E as desigualdades
são o centro nevrálgico dos problemas de um Brasil que não precisa focar em fazer
mais riquezas, senão distribuir a existente, radicalmente.
CAMINHOS DA JUSTIÇA SOCIAL – Para realmente mover-se em direção a um futuro focado na libertação dos nossos povos e na conquista de uma sociedade pós-capitalista verdadeiramente emancipada, dois pressupostos básicos sãos necessários: separar crescimento de igualdade e reinventar a democracia.
O primeiro exige superar o estruturalismo econômico, ir além dos instrumentos econômicos tradicionais que, por vezes, quando combinados com vontade política, permitem redução de assimetrias. A luta por igualdade não pode depender de crescimento econômico, porque crescer hoje significa aumentar também o uso de energias poluidoras, como petróleo e carvão, que está concretamente extinguindo o planeta. O crescimento não é infinito porque os recursos e o planeta são finitos. O crescimento, sem ser pensando criticamente, produz e reproduz pobreza. De forma que a transição social é inseparável da transição ecológica.
As desigualdades aumentaram em todo o mundo nos últimos 30 anos com a hegemonia neoliberal, e esse tipo de capitalismo destruiu a capacidade humana de viver como iguais, e força-nos a viver como consumidores. O neoliberalismo destrói nossas liberdades e nos deixa refém de um sistema financeiro que capta a renda produzido pelo trabalho. Igualdade já não pode ser entendida apenas como uma questão de distribuição de riquezas, mas como uma filosofia de ação social, como afirma o intelectual francês Pierre Rosanvallon.
O segundo pensa a democracia, como regime, que tem progredido em todo o mundo, mas degradando-se como forma de vida em sociedade. Ou seja, cresce o sufrágio universal e a liberdade liberal, mas se retrai a ideia de bem-viver comum. A democracia liberal foi capturada pelo poder econômico e distanciou-se da cidadania. A democracia está descolada das aspirações da sociedade e, no caso do Brasil, o sistema eleitoral vigente impõem um presidencialismo de coalizão que gera alianças de interesses fisiológicos, e degradação ideológica, portanto descolada de real emancipação social, em nome da governabilidade.
A reforma política, assim, é um tema essencial desta eleição brasileira porque nos dá uma chance, mesmo que institucional, de “democratizar a democracia”, que deveria passar não apenas por tópicos eleitorais, mas por aumento da participação cidadã na gestão pública, garantia do acesso público à informação, extinção do Senado, reavaliação do sentido de representação e discussão da relação justiça versus controle democrático.
UM CRITÉRIO CLARO – Entre o jogo das semelhanças/diferenças, o projeto de política externa é o que deixa mais claro marcações
entre Dilma Roussef e Aécio Neves. Enquanto a maioria dos analistas
internacionais sérios defendem a continuidade da integração latino-americana
que o Brasil promoveu na última década, o programa de Aécio fala em
“flexibilizar o Mercosul”, ou seja, atacar uma das mais importantes iniciativas
de integração na América do Sul, e que não se limita ao comércio.
O PSDB, defendendo a velha lógica da
integração apenas pela via comercial, quer se alinhar com a Aliança do
Pacífico, de países com governos atualmente de orientação conservadora, e
regressar ao alinhamento assujeitado às potências tradicionais como Estados
Unidos, Japão e União Europeia, que não deixa margem para o questionamento da
arquitetura internacional, que deve fortalecer os relacionamentos Sul-Sul. O
Brasil precisa aprofundar o seu compromisso político e econômico com a região e
sua presença no Sul Global e não ignorar as relações Norte-Sul, relacionar-se
com esses países como igual.
Já o PT pretende avançar na projeção
internacional “ativa e altiva”, como definiu certa vez o ministro Celso Amorim,
e isso se expressa na promoção de uma identidade terceiro-mundista, mas com
participação entre grandes atores emergentes, como o BRICS, a defesa do
multipolarismo, a reforma do multilateralismo, a ênfase na Unasul e na Celac –
opções contra as quais o PSDB e seus seguidores se manifesta reiteradamente.
AVANÇAR É SUPERAR - De modo que há hoje no Brasil, mais
do que nunca, uma disputa entre elites, com a diferença que no PT, por conta do
seu DNA , ainda há quem queira continuar expandindo salários reais, direitos
sociais e bens públicos, enquanto que o PSDB considera que o “peso” democrático
gera irracionalidades econômicas que acabam prejudicando o cidadão.
Um dos grandes traços problemáticos é que governo viável, segundo o
que as lideranças petistas e seus seguidores não cansam de repetir e executar, só
se dá quando assentado nessa ladainha monotemática que celebra o “pragmatismo”,
e a “governabilidade”, relevando, propositalmente, sua indisposição para que o
parâmetro da universalização da cidadania que, a melhor juízo, tentam promover,
não fosse apenas o do cidadão-consumidor, que acaba introduzindo na sociedade
valores de mercantilização de diversas dimensões da vida e da natureza e, em
última análise, reforçando o conservadorismo. Concretamente é isso o que ocorre
hoje, em lugar de projetar alternativas ao capitalismo, em largo prazo e, em
curto prazo, ao menos combinar certas medidas inegavelmente assistencialistas
em vigência – necessárias porque urgentes – com processos de formação e
organização políticas que evitassem a acusação de má-fé com a criação de
redutos eleitorais que reforçam esse ciclo vicioso.
Na lógica histórica da esquerda
latino-americana nunca se materializou a ideia de superação etapista do capitalismo.
Essa suposta realidade de hoje exige muito cuidado para impedir que os avanços,
tímidos mas reais, sejam revertidos pela restauração conservadora e para que a
desesperança não se imponha definitiva e irreversivelmente. O PT, como
governo, tem mais uma oportunidade de fazer valer o seu vermelho, mas o desafio
também abrange outros partidos e movimentos sociais, no jogo da pressão, e comprometidos com a ampliação da nossa imaginação emancipatória.
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