Elas estavam juntas. A mumia mais famosa e as britanicas mais irritantes do mundo. Juntas, esclareca-se, por metonimia. Estavam compartindo o mesmo espaco de exposicao. Em janeiro deste ano, a Millenium Dome, tambem conhecida como O2 Arena, sediava paralelamente a exibicao com as riquezas da tumba do farao Tuthankhamun e o show revival do grupo pop Spice Girls. Particularmente, um revival mais interessante e menos aborrecedor seria o das mumias. Imagino que estas saberiam dar-se o respeito e nao arruinariam nossa pacienca com nenhuma estupida cancao da epoca do apogeu nem do Egito nem da boys’-girls’ band...
Visitei a exibicao sobre Tuthankhamun na mesma noite em que as “garotas apimentadas” realizavam seu grande retorno. Foi nessa curiosa coincidencia, apos mais de dois anos vivendo em Londres, que tive a oportunidade de ver a maior concentracao de ingleses que jamais tinha visto. Eles, principalmente elas, chegavam em centenas, aos bandos, a maioria adolescentes, vestidos e falando e agindo como “chavs”, alguns com roupas com motivos da bandeira da Gra-Bretanha, e passavam reto e rapido em direcao a entrada da arena de espetaculos sem nem olhar para o pavilhao do pobre farao.
Muitos ingleses ainda gostam de Spice Girls. Tambem muitos, felizmente, odeiam. Este post trata de encerrar a fase “londoner” deste blog. Ja tenho quatro meses de estar fora da Inglaterra, vivendo na America Central, mas devido a extrema intensidade do ritmo que estabeleci aqui para a execucao de projetos pessoais, as historias salvadorenhas encheram blocos de anotacoes e folhas soltas enquanto eu registrava na blogsphere (com assumida defasagem) algumas ultimas lembrancas e informacoes importantes sobre a Inglaterra.
Assim, a coisa aqui trata de tentar apontar algumas generalizacoes sobre os ingleses, num exercicio de analise e sintese, como parte do processo de aprendizagem e valorizacao da experiencia vivida atraves da distancia fisica e temporal que muitas vezes nos permite refletir com menos parcialidade e mais exatidao. Ou nao...Alem das Spice Girls, os britanicos compartem gostos e desgostos referentes a elementos do cotidiano que, embora filtrados pela permanente obsessao das divisoes sociais, podem ser bastante peculiares. Eis alguns exemplos:
- Britanicos adoram listas. Especialmente as de “1000 coisas (a ver, escutar, ler, fazer, ir, etc) antes que voce morra”. Alias o tema morte tem uma representacao curiosa na “britanicidade” porque eles tambem tem um interesse digno de nota (pela existencia de um mercado e publicidade) por diferentes maneiras de preparar seu funeral, enterro, ritos de morte, etc – justificado, claro, por nao deixar nenhum parente em apertos financeiros ao morrer sem aviso previo e sem plano de pagamento.
- Os britanicos tambem adoram Marks & Spencer e o HMV. Sao lojas de departamento inglesas que, sempre com as distincoes sociais presentes na analise, sao bastante frequentadas pela sempre polemica e mal-definida classe media. Ha tambem a popular (mas nao estou certo se esta eh originalmente inglesa) Primark. Nesse aspecto, do habito de consumo, poderiamos fazer varias relacoes, mas vamos nos deter em grosseiramente comparar HMV e Marks & Spencer com a Renner e a C&A e a Primark com a Pompeia, talvez (para leitores pelotenses que sabem o que eh a Pompeia).
- E sim, o estereotipo, no aspecto alcool, reflete consideralvemente a realidade. O jornal The London Paper, popular tabloide que possui grande fatia do mercado dos free paper da cidade, publicou uma nota em outubro do ano passado sobre uma pesquisa intitulada Health Profile of England. Os dados mostram que 18% da populacao masculina e 8% da populacao feminina do Reino Unido sao considerados bebedores excessivos, onde o consumo medio de alcool de um adulto equivale a 37 garrafas de whisky por ano. Os ingleses nao se orgulham disso, mas a estranha cerveja Ale continua sendo uma especie de orgulho nacional, cujo habito de consumo segue sendo cultivado, pelo menos entre os mais velhos, em qualquer local pub.
- O tema bebida segue sendo associado com cigarro. E pensar nessa equacao atualmente na Inglaterra deixa de ser obvio. O pais, em julho do ano passado, adotou a politica de smoke-free, ou seja, eh proibido e ilegal fumar em qualquer espaco fechado do territorio nacional incluindo pubs, restaurantes, locais de trabalho, bares e discos. Tema de alta polemica em toda a Inglaterra, em Londres as opinioes divergiam e eram debatidas com paixao entre grupos de amigos. Com a introducao da lei, era engracadissimo ( para nos nao-fumantes) ver grupos de pessoas na porta da frente dos pubs, encolhidos de frio, acendendo seus miseraveis cigarros proibidos indoor. Nos night clubs, as cenas eram ainda mais bizarras. Areas outdoor foram adaptadas em varios clubes para prover alternativas aos viciados que chegavam a ficar mais de uma hora em longas filas esperando sua vez de alcancar o patio e dar dois ou tres tragadas. No aniversario de um ano da lei, o tema segue sendo controverso, mas ja melhor assimilado por uma cultura abertamente fa do cigarro e do alcool.
- Em conversas casuais com nativos, nao era raro o tema da imagem internacional do britanico surgir. Muitas vezes eles reconhecem a fama de secos, pretensiosos, falsos e sarcasticos que lhes vale o estereotipo. Os britanicos, verdade seja dita, tem suas fronteiras de relacao com o outro demarcadas em limites bem menos extensos que os latinos, por exemplo (exceto quando estao bebados). Nao saem dando tapinhas nas costas na primeira conversa e quizas nem depois de muitas. Prezam por discricao e respeitam muito a privacidade do outro e a sua. Eh rarissimo gente que te encare, que te olhe fixamente, de maneira pejorada ou nao, em espacos publicos por mais estranho que voce possa estar agindo ou vestido, por exemplo – coisa que na America Latina, ao contrario, eh bastante comum. Esses limites tacitos pessoais lhes valem a fama de frios e falsos e alimentam seu sarcasmo. Britanicos usam indiscriminadamente - levando a banalizacao - palavras como sorry, lovely, please. Esse eh um comportamento que se poderia dizer tipico, quase folclorizado, manifestado muitas vezes no cinema, onde os americanos aproveitam para tirar uma onda dessa "britanicidade". Eles, de fato, sao otimos em sarcasmo e numa relacao simbiotica, onde eh dificil definir se quem veio primeiro foi o ovo ou a galinha, desenvolvem a falsidade. E quando esse sarcasmo nao eh muito sofisiticado, eh irritante ver a artificialidade de certos comportamentos que passam a, de certa forma, defini-los.
- Nisso ha muito – quero acreditar – da relacao com as migracoes, com as invasoes cometidas pela Gra-Bretanha, com o papel do pais com suas antigas colonias, o abrir ou o fechar de fronteiras e as politicas compensatorias para populacao de paises antes dominados, minorias etnicas que passaram a consitituir o povo britanico – fisica e culturalmente – para muito alem de certos tracos fisicos: India, Bangladesh, Paquistao, Jamaica, Irlanda, Turquia, Egito, Escocia, o povo Judeu e varios mais. Debater formacao cultural em um lugar como a Gra-Bretanha inclui elementos que sao dificieis, em termos medios, para uma mente latina acompanhar. Um exemplo: como apontou o articulista do jornal The Guardian, Timothy Garton Ash (escrevendo de Porto Alegre) em coluna publicada em cinco de julho do ano passado, “falar sobre o crescimento domestico do Jihad na Europa significa tanto quanto eu imagino que significaria dar uma palestra academica em Brixton (bairro londrino de ampla conformacao negra) sobre os povos Yanomami do Brasil e da Venezuela”. O orgulho do cosmopolitismo de Londres e da multiculturalidade de todo o Reino Unido se mistura com o entender-se, desde o berco, como nativo de um lugar que tambem eh dos outros, mesmo quando esses nao falam ingles direito, ou falam com um acento estranho, porque deve-se respeitar as diferentes etnias, as diferentes migracoes, as diferentes culturas. Um dilema que muitos paises vivem, mas que no Reino Unido eh marcado pela historia imperialista do pais e gera uma complexa equacao de identidade.
- Em Londres, uma caracteristica singular soma-se a “britanicidade”. Uma pesquisa da empresa Combined Insurance, publicada em maio do ano passado, afirma que os londrinos consideram eles proprios as pessoas menos sociaveis e mais mau-humoradas de todo o Reino Unido. Cerca de 44% dos residentes em Londres se definem como nao prestativos. Os estressantes deslocamentos diarios ao trabalho (commute), o altissimo custo de vida, o ritmo enlouquecedor e superlotacao da capital inglesa sao os elementos considerados responsaveis pelo titulo de mais ranzinzas da Inglaterra.
- Numa secao tipo “carta do leitor” de sete de dezembro do ano passado tambem do The London Paper, a colunista Lucy Calderwood expressava com bom-humor justamente como esse frenetico ritmo de Londres acaba configurando o perfil dos residentes. Os ingleses que nao sao de Londres geralmente tendem a pensar que a capital eh uma especie de diabolica, perigosa e irritante cidade. Para o visitante, especialmente o ingles nao-londrino, a capital eh muito estricta com com as suas proprias exigentes e tacitas regras sociais. De fato ela eh. Mas os turistas, ingleses ou nao, em geral nao da a minima para essas “leis”. Quem acaba por se irritar sao mesmo os moradores de Londres que precisam enfrentar hordas de turistas que nao sabem que precisam ficar do lado direito da escada rolante em lojas e, principalmente, metros para que os que nao querem esperar a escadinha chegar ate seu destino possam passar pela tangente. Parar no final da escada para decidir para que lado seguir tambem eh fatal, pois acabar gerando um efeito domino na eterna fila de gente que vem logo atras. O ritmo do andar nas ruas eh outro ponto fundamental, pois os londrinos nao ficam exatamente contentes, para dizer o minimo, com aqueles que nao mantem o fluxo peatonal.
- Falando em metro, vale a pena tambem comentar sobre o Tube, ah, o Tube! Este eh outro dos parodoxos mixtos de orgulho e asco britanico. O metro de Londres, cuja primeira linha entre Paddington e Farringdon inaugurou-se em 10 de julho de 1863, foi o primeiro transporte ferreo subterraneo do mundo e hoje eh muitas vezes considerado um pesadelo para os londrinos. A queixa generalizada reside principalmente num ponto: superlotacao. Os metros de Londres sao muito, exageradamente, cheios. Novamente, nao tanto para os turistas que raramente tomam os trens nas horas de rush. Mas para os commuters (que de uma forma ou outra inclui todos os que trabalham em Londres) tomar o metro – ou o tranporte publico em geral, pois onibus e DLR nao ficam para tras – eh uma batalha diaria. Com seus passageiros abarrotados, empilhados e esprimidos, os trens correm quase a cada minuto, literalmente, nos horarios de pico e mesmo assim nao dao conta de desafogar o fluxo. E qundo alguma linha nao funciona, ou apresenta delay (o que nao eh raro) por conta de um defeito tecnico ou de um suicida que pulou nos trihos, dai sim voce pode vivenciar um pouco do inferno na terra. Para fazer justica eh importante mencionar que essa experiencia nao eh um “privilegio” dos londrinos de hoje. Por ocasiao da reabertura do Museu do Transporte de Londres, em novembro do ano passado, a imprensa da capital publicou algumas fotos que mostram, ja em 1922, as estacoes entupidas de gente que da uma sensacao de que o problema das multidoes eh realmente uma caracteristica da cidade. Ainda assim, apenas para piorar o humor dos londrinos, nos vagoes do Tube (apelido do metro) eh constante a presenca de gente que trata o trem como uma extensao da sua cozinha e durante a viagem come os mais mau-cheirosos lanches e pratos. Kebabs, burgers, sopas e massas pre-prontas, caixas de restaurante fast-food de galinha frita... O abuso eh tanto que existe ate campanha para desincentivar o consumo de comida no metro. Ressalve-se que, ainda hoje, os metros nao tem ar-condicionado e as estacoes nao tem banheiros. E, evidentemente, sempre mind the gap!
- A questao verde eh outro ponto bastante caro para os britanicos. A coleta seletiva de lixo eh bastante eficiente em varios boroughs e, embora nao seja obrigatorio por lei em todos, as prefeituras locais incentivam e desenvolvem varias politicas para seus moradores assimilarem a ideia de “go green” que incluem desde descontos no council tax (uma especie de IPTU), ate eventos especificos em parcerias com escolas, distribuicao gratuita de recepientes para reciclagem, folhetos informativos com os programas especificos e linhas telefonicas para informacao. O debate eh tao presente na Inglaterra que mesmo o controverso Congestion Charge, imposto de oito libras diario e permanentemente cobrado para qualquer veiculo circular na area central da cidade para prevenir congestionamentos, foi associado a uma nova taxa chamada Low Emission Zone. Este tambem sao impostos para a circulacao diaria, mas que afetam apenas veiculos pesados como onibus, minibus, vans, caminhoes. Se esses veiculos nao atendem os padroes europeus para baixa emissao de gases, ou seja, nao estao adaptados ou modificados para poluir menos, terao que pagar taxas que estao entre 100 e 200 libras para um unico dia de circulacao na capital inglesa. Como toda a congestion charge zone esta incluinda na low emission zone, os proprietarios dos tipos de veiculos afetados devem pagar os dois impostos. Um ultimo ponto nesse aspecto das green policies do Reino Unido, ainda sobre reciclagem, eh que muitos ingleses quando comparam as politicas do seu pais com os da Alemanha ou da Suica acham que a Inglaterra eh imunda – e muitos europeus de outras partes pensam o mesmo. As sacolas plasticas distribuidas gratuitamente nos supermercados estao na mira dessas politicas e devem em breve sair de circulacao.
- Terrorismo e paranoia sao topicos ja abordados em outros posts nesse blog, incluindo a surpreendente historia de Jean Charles de Menezes que nao poderia ter tido outro destino alem de virar filme. Migracao eh um assunto diretamente relacionado com esse recente e latente dilema no Reino Unido e motivou no ano passado o polemico plano para a criacao de um teste de cidadania para os imigrantes que desejam obter o passaporte vermelho-escuro. O articulista do The Guardian Jonathan Freedland, em artigo de seis de junho do ano passado, opinava que a ideia “viola dois aspectos da britanicidade cuja existencia nos (os britanicos) podemos provavelmente todos concordar: nossa vaguedade sobre identidade nacional e nossa aversao sobre o patriotismo-de-bater-no-peito”. O Reino Unido, em realidade, nao esconde sua preocupacao com o boom migratorio que vive nos ultimos cinco anos, especialmente dos paises do Leste Europeu que recentemente ingressaram na Uniao Europeia. Poloneses e Hungaros sao os mais notorios, mas ha tambem um grande fluxo de latinoamericanos. A preocupacao do governo – alem da obvia questao economica que deriva da insatisfacao dos britanicos com o fato de que os estrangeiros utilizem o servico social ingles, o sistema de saude publico e outras estruturas pagas pelos taxpayers nativos – eh com a possiblidade de tensoes raciais. Essa alarmada tensao ocorreria pela falta de entendimento cultural em aspectos minimos do cotidiano. Assim, o governo teve a brilhante ideia de preparar em junho do ano passado “pacotes culturais” (cultural briefing packs) distribuidos aos imigrantes recem-chegados com dicas de como eles devem “portar-se” no Reino Unido. Os pontos mais interessantes, por assim dizer, sao as recomendacoes de: nao cuspir nas ruas, apertar a mao de alguem que voce conhece pela primeira vez, pedir desculpas se voce trombar por acidente com alguem na rua, nao encarar as pessoas em publico, e fazer filas em locais como paradas de onibus e agencias de correio.
- Outras obssessoes britanicas como o clima, as celebridades e, especialmente, o NHS (National Healh System, o SUS ingles) tambem ja foram comentadas em posts anteriores. Por haver trabalhado num escritorio administrativo do NHS foi possivel perceber o quao presente, de fato, a gratuidade e o acesso ao sistema esta no cotidiano dos britanicos. E da experiencia em escritorios ingleses, incluindo a Broadcast Date System e a One World Action, conheci o peculiar habito das rodadas de cha embora nunca tenha participado do processo. Ocorreu que duas ou tres vezes ofereceram-se para fazer cup of tea pra mim, o que aceitei mas como “a mug of coffe”, em lugar de cha, entretanto, nao tinha paciencia para esse costume que eles adoram, isto eh, de me oferecer para preperar para todos os outros. Numa ilha de quatro computadores, por exemplo, cada um dos membros, pelo menos uma vez durante a jornada de trabalho, se levanta e pergunta se seus companheiros querem um cha. Em geral, todos dizem sim, entao o gentil colega vai a cozinha e volta com quatro ou cinco xicaras. Assim, esse processo soma no minimo quatro xicaras de cha por dia consumidas por cada ingles, fora as que eles preparam individualmente para si mesmos.
Conheci um pouco da cultura inglesa que, como ja disse uma vez e repito, nao se reproduz exatamente na cultura de Londres. A capital tem suas proprias peculiaridades e ritmos marcados pelo cliche da multiculturalidade e essa, mais do que conhecer, aprendi a gostar. Conheco hoje, honesta e praticamente falando, mais Londres do que Porto Alegre (mas nao mais do que Pelotas. Nao mesmo...). No periodo vivido lah, estranhei, desgostei e reclamei da cidade que, ao final, aprendi a gostar. Amo Londres, como lugar, como lembranca, como experiencia, como aprendizado, como oportunidade, como batalha e como criacao de sinceras e fortes amizades.
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